patologia do acaso, diário, 109: Barbárie

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2018, Julho, 29. Barbárie. A cidade é a doença; o silêncio na cidade, quando um pouco se verifica, é vazio e nauseante, a naturalidade da sua existência é falsa. O silêncio na cidade é fúnebre, é um simulacro de ausência, um estar de mortos que não estão mortos e que na voragem de um qualquer instante se decidem pela violência de existir como se estivessem sozinhos no mundo. A cidade é uma selva de patologias humanas recalcadas que afloram em pequenos gestos bárbaros tidos como a consequência natural de uma certa necessidade, de um dado movimento. A cidade disciplina por uma violência invisível que não pode ser contida. Não há sossego na cidade, apenas intervalos de uma loucura tida como aceitável e confundida com a imperfeição natural do ser. O silêncio urbano é estéril, nada dele floresce, a todo o momento pode ceifá-lo a agressão dos ruídos da selvajaria individual de portas fechadas com violência, de estores soltos num barulho que ecoa por todo o quarteirão, do ladrar dos cães fechados em varandas. Não existe Natureza na cidade; um parque torna a vida urbana um pouco tolerável, mas é mentira, depois vem o regresso às celas de onde não se consegue vislumbrar o céu, nem sombra de árvores, e as únicas aves que aparecem são bandos de gaivotas, com os seus guinchos tenebrosos, porque os contentores do lixo ficam abertos. A cidade é um instrumento do Poder e essa dialéctica disciplinante e manipuladora está interiorizada na existência urbana. Tornada a pessoa invisível, reduzida a número, a consumidor compulsivo, enfim a objecto orgânico destituído de segredos de vontade, a liberdade mudou-se numa anarquia na expressão e por fim a expressão perdeu o veio do sentido; tornado tudo como expressão, toda a linguagem se mudou em insignificante e tornou-se possível dizer o que não é plausível de ser dito, fazer-se o que não é admissível de ser feito. Tudo é expressão da liberdade de afirmação do ser-se desde a infância, sobretudo na infância, porque a primeira educação se transformou na causa de todos os traumas futuros. A cidade transforma-se, então, numa nova forma de barbárie; numa barbárie bem vestida e mal educada. A civilização decompõe-se nos seus bastidores enquanto se dança em redor da fogueira. A verdade mais relevante desta nova forma de barbárie é a de não sabermos onde estamos, dado que ainda conseguimos escrever o nosso nome, numa caligrafia quase indecifrável, mas ainda sabemos.

 

Fotografia: Jorge Muchagato, Fevereiro de 2018

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