patologia do acaso, diário, 111: A fronteira

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2018, Agosto, 3. A fronteira. No relâmpago de um momento, a noite tornou-se-me insuportável, não alcanço, não descortino, na minha geografia descendente, onde ficou estabelecida a marca da fronteira com a agressão da realidade. Mas sei que ficou estabelecida algures numa depressão terrosa que foi transposta na força do meu devir único. Mas não encontrar agora o lugar dessa fronteira não equivale, em termos absolutos, a estar perdido. Nunca me encontrei como agora. Tomo o tranquilizante antes do jantar, que fica cada vez mais cedo, e depois mais uma metade para adormecer antes de ser noite. Ou, então, também é possível que nunca antes me tenha desencontrado como agora e por isso não aguente a noite e por isso me encontre na direcção do despojamento completo, preso apenas a este trabalho a que dedico toda a minha energia, com excepção destes escritos. São precisos muitos anos para construir uma fronteira com a realidade. Talvez não esteja longe da verdade se concluir pela minha vida inteira. Entretanto, a idade vai tornando cada vez mais instável o equilíbrio possível entre as imposições e as cedências à realidade; ou vai adquirindo cada vez mais plausibilidade o abandono radical desse equilíbrio no sentido da liberdade enquanto desinteresse de tudo, enquanto abandono completo ao mais lúcido e real despojamento possível. E entrar dentro do silêncio. Se a fronteira com a realidade ficou assinalada num algures do esquecimento, a existência já está no interior do silêncio. Gostos que se perderam, expectativas que se destruíram, impossíveis de exigências demasiado indignas que não se está disposto a pagar, um vazio ante-final para mais uma ou outra realização e depois então a descida ao despojamento completo. Existir dentro do silêncio significa a descoincidência conceptual absoluta da linguagem. E deste lugar já não se vê a fronteira ainda que subamos ao topo, ou apenas nos ponhamos, de pé, em cima de um banco, como na infância. Neste lugar estão profundamente esquecidas as coordenadas da fronteira.

 

Fotografia: Jorge Muchagato, Caldas da Rainha, Casa da Cultura, Parque D. Carlos I, 15 de Junho de 2018

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