“e eu mal auenturado mourome andando assi antre cuidado e cuidado” – escritos sobre a depressão, 7

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Aumentei a dosagem do tranquilizante da manhã para mais meio comprimido. Na maior parte das manhãs acordo exaltado por um pânico interior que me inunda a mente de confusão, acelera a respiração e não dá destino aos meus gestos. Consigo preparar o pequeno-almoço, bebo o café e fumo o primeiro cigarro. Tomo a medicação, entre a qual o tranquilizante. Mas não acordo tranquilo para o dia, sereno, quero dizer, com um ainda que ínfimo sentimento de equilíbrio e de potência que deveria existir na parcela de tempo em que do sono recobramos o entendimento e a consciência clara dos sentidos para o pensamento e a acção. A dor psíquica é semelhante à fome, a partir de uma dada fronteira já não se sente, já não se luta, espera-se, espera-se e não se sabe o quê, porque a morte é sempre uma distância terrível. As qualidades da dor psíquica agravam-se com o envelhecimento, uma vez que o discernimento das coisas todos os dias se amplia. E assim a descoincidência da dor, e a própria dor, suponho, ou pelo menos assim o entendo, transforma-se numa linguagem. É possível que algum dia consiga falar com a minha dor dentro do silêncio do discernimento. Tenho medo de envelhecer, admito essa verdade, porque o corpo cede, e o juízo alonga-se do mundo. Ora, o mundo é movimento constante, transformação, avanço e recuo, tradição e inovação. E vão existindo cada vez mais coisas, de maior ou de menor importância, que carecem, pela sua agressividade disfarçada de novidade, que nos alonguemos delas, porque se vislumbram, sem acentuada dúvida, as mais diversas formas de manipulação a que a maior parte abre os braços como a uma dádiva da vida contemporânea, e são apenas lixo das mais diferentes naturezas. O estigma claro que existe em relação às doenças mentais é um sinal da invisibilidade em que se induz a vida. Porque, ao contrário do que possa julgar-se, tornámo-nos invisíveis, por meio do excesso, da saturação e da rapidez. O estigma associado às doenças do foro mental reflecte esta complexidade e outra da maior importância: a relação de uma sociedade com a memória – a memória quotidiana, a memória de grupo, a memória colectiva. Então há que destruir a força estruturadora da história, fazer definhar o seu ensino, menorizar a potencialidade dos seus métodos, “falar” para todos para que não se “fale” para nenhum. O envelhecimento é isto o que nos traz: a necessidade imperiosa de nos alongarmos do mundo presente e activo nos ecrãs. E compreendermos, por fim, que apesar dos mesmos vocábulos se deixou de falar a mesma linguagem. Não se está nos ecrãs, está-se doente. E é assim que me apareço ao espelho que existe no ascensor do prédio quando me acontece olhá-lo por alguns segundos. Então faço um esforço por conseguir concluir que não estou doente, mas um pouco mais lúcido hoje do que ontem.

5 de Março de 2019

 

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Jorge Muchagato, sem título, colagem e acrílico, dos diários gráficos, 2010

 

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Citação no título: Bernardim Ribeiro,«Egloga Qvarta chamada Jano», in História de Menina e Moça, reprodução fac-similada da edição de Ferrara, 1554, estudo introdutório por José Vitorino de Pina Martins, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. Cix.

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