patologia do acaso, diário, 182

2020, Maio, 27. Temos na inteireza e na complexidade do que somos todas as estratégias de sobrevivência necessárias, mas não o sabemos, não o imaginamos, não o antevemos, até que as circunstâncias, esgotadas como no termo de um beco, as revelem e lhes dêem vida. É suficiente que estejamos receptivos para essa força que em nós desconhecemos sem nos deixarmos oprimir demasiado pelo entendimento, que em todo o caso revelará sempre a sua primazia final, mas no tempo em que tal reflexão, acordada, se veja requerida ou se imponha. Sobreviver é estar disponível, atento, ao que não sabemos de nós e ao que não sabemos da vida. Porque de qualquer forma saberemos, dado que estamos absolutamente sós perante esse instinto revelador. Devemos ter a sabedoria de respeitar o que em nós desconhecemos.

 

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Jorge Muchagato, 21 de Maio de 2020.

epistemologia do silêncio, um diário da peste, 21

Maio, 25
Todos os discursos do Poder são obscuros, é essa a sua natureza identitária, porque a obscuridade, a indefinição dos contornos, repele e repelindo pode distanciar-se e elevar-se. O Absolutismo consagrou a invisibilidade mortal do monarca, que só Deus via inteiramente, o fascismo a idealização do chefe. Em ambos, o Poder é omnipresente e omnisciente. Não podendo ser invisível, dificilmente idealizável, inconsequente em relação à verdade, ao capitalismo, na sua evolução actual, resta o poder da mentira, da boa gestão da mentira. Bem gerida, isto é, gerida segundo a conveniência, a mentira passa a ser entendida como a única forma possível da verdade, o único discurso legitimado sobre o Mundo. Assim, a obscuridade que caracteriza todos os discursos do Poder, tem que ser outra coisa; e passou a ser o caos, a confusão, onde toda a gente age por segurança, convencida de não agir por medo, porque a fraqueza da segurança tem a dignidade da sobrevivência. Todavia, em termos práticos, tudo desemboca no medo e perante o medo tudo é possível e o que não se aceitava ontem aceita-se hoje. Deste modo, a força do perigo transforma-se na justificação aceitável do Poder. Então, a questão dos meios não se coloca ou transforma-se numa questão menor porque necessária. O que nos espera, e aos nossos filhos e netos, está apenas a começar.

“e eu mal aventurado mourome andando assi antre cuidado e cuidado” – escritos sobre a depressão, 10

10.

A representação que construímos de nós, quaisquer que sejam as circunstâncias, as limitações ou a guerra que nos assola, é uma linguagem; as imagens que escolhemos, como espelho ou auto-representação, deixaram de ter a profundidade de um desejo, a força de uma vontade e de uma projecção, para se constituírem enquanto um produto consumível disponibilizado ao juízo dos outros e depois, consoante o resultado dessa avaliação expressa por símbolos ou por palavras, destinado a regressar a nós, legitimado pela invisibilidade que a todos congrega. Esta aprovação sempre esperada, antecipada na angústia da expectativa de um sinal do outro, que tal como nós já não é um outro, mas o mesmo de nós, o mesmo de todos, obedece a paradigmas de felicidade e de sucesso que se foram estabelecendo, impondo, ou seja, a um código correspondente à verdade saudável, psíquica e física. Tudo o que está n fronteira ou no exterior deste sistema estabelecido como única forma de vida aceitável para o consumidor, é remetido para um imenso território sombrio e depressivo. A ausência dessas marcas significa a marginalidade, o ser-se um fora-da-lei da felicidade sistemática. De alguma maneira, a coragem da verdade de si, que é a suprema forma da liberdade, passou a estar associada à marginalidade da depressão, ao desprazer da convivência com outros interesses que não os da massa. Existem alguns discursos visíveis, hoje, sobre a depressão, mas quem fala? Os discursos da doença ou a radicalidade das narrativas verdadeiras dentro dos seus sentidos, continuam sem visibilidade nem voz. As doenças do foro mental tornaram-se inexistentes e as suas existências encontram-se entregues a si mesmas, dentro de um mecanismo dentado que apenas subscreve as receitas necessárias dentro dos quinze minutos tolerados.
A depressão, ou a melancolia, deixou de estar associada a uma das diversas formas da loucura, como o foi durante séculos, para ser tida enquanto uma forma de transgressão e, assim, naturalmente, tornar-se punível, não já com o encarceramento elementar, mas ainda com o estigma social, com o silêncio mais difícil de suportar: o silêncio que assiste e assistindo acusa e condena sumariamente, porque não se tem o direito nem é legítimo sofrer de depressão quando tudo em nosso redor é uma gigantesca representação primária de felicidade simbólica que nem a própria linguagem é capaz de escrever correctamente. Estamos sós, mas vemos mais.

 

diários gráficos, 27 de Novembro de 1996

 

Citação no título: Bernardim Ribeiro,«Egloga Qvarta chamada Jano», in História de Menina e Moça, reprodução fac-similada da edição de Ferrara, 1554, estudo introdutório por José Vitorino de Pina Martins, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, pp. cix [109].

epistemologia do silêncio, um diário da peste, 20

Maio, 19
A escrita da história é construída a partir de conceitos; para além de ser, em termos gerais, uma forma de conhecimento, é uma episteme, uma estrutura de pensamento pouco conivente com a espuma da onda; interessa-lhe sobretudo a massa do movimento da água que faz a onda e as suas causas remotas. A escrita da história é um exercício de liberdade e de responsabilidade pelo qual o historiador responde se as contas lhe forem pedidas; ele escreve, aliás, partindo do pressuposto incontornável que lhas pedirão. O exercício do seu pensamento tem, também, uma natureza filosófica, pois deve saber porque pensa o que pensa e por que razões se pensou de uma dada maneira e, mesmo, (Paul Veyne) se não está a ser enganado, deliberadamente ou em acordo com as circunstâncias.
Sobre a pandemia, o que nos é dado saber diz principalmente respeito às características e às consequências da doença, porque sobre as suas causas, concretas e remotas, tudo se resume, aos olhos dos leigos, a suposições, espartilhadas, com ou sem nexo. O que o nosso pensamento encontra na realidade é um tumulto informativo, oficial ou oficioso, é a legitimidade de conhecimentos científicos que se confirmam ou contradizem num amplo espectro que vai do conformismo biológico à luta pela verdade. A doença, natural ou não, foi, para todos os efeitos, instaurada como um meio, como um instrumento que a perspicácia do poder político mais ou menos conseguiu ou não controlar, conforme as idiossincrasias das elites decisoras e das circunstâncias e instrumentos dos respectivos ordenamentos jurídicos e políticos.
O único conhecimento concreto que nós, os comuns, temos relativamente à pandemia é que está instaurada no nosso quotidiano e pouco ou nada mais, porque tudo o resto é a incerteza oficialmente assumida aliada à pertinência da omissão. Sucede que o mundo de 1914, de 1939 e de 1989, até de 2001, já não existe, embora nos falem dele com frequência para sustentar uma situação de naturalidade e de continuidade onde o que existe, de facto, é reconfiguração, ou, mais apropriadamente, a ruptura de uma dada ordem. Todavia, o desejo e a instauração da ruptura adquiriu uma complexidade que deve estar em acordo com a complexidade real do mundo presente, sob pena de não ser dominável e, assim, se revelar ineficaz. Os métodos violentos da instauração de uma ruptura foram substituídos, para o vulgo, pela plausibilidade apaziguadora da solidariedade e da compaixão. Por detrás de ambas, o que existe é a violência dos métodos invisíveis dos Poderes em presença no discurso desta nova realidade. Depois de a globalização, e a evolução, no interior dela, do capitalismo, nos ter tornado consumidores invisíveis, isto é, de nos ter saqueado a identidade individual e de grupo, a pandemia vem retirar-nos a única coisa que faltava ser-nos roubada, sem o sangue da guerra nem a ideologia política do fascismo clássico: o futuro. A morte dos velhos nem chegou a ser uma questão digna desse nome na turbulência da espuma da onda.

epistemologia do silêncio, um diário da peste, 19

Maio, 18
Onde estamos? Quer dizer, em que qualidades do caminho? A pergunta impera sobre o nosso destino. É omnipresente por mais que a reneguemos ou a não queiramos enfrentar em toda a nossa inteireza. A pergunta está em todo o lado, dirige-se-nos, agride-nos se necessário for. O que desejamos, por onde vagueia, perdida, a nossa vontade? Desaprendemos os alicerces húmidos da fragilidade emocional para onde converge, inexorável, toda a força do que somos. Esperamos sem esperar, vivemos sem viver.
A sociedade actual precisa de um saber que rejeita com todas as forças: o saber que advém da filosofia. Existem diversas e profundas razões para essa necessidade, mas é suficiente enunciar uma, que é uma espécie de oceano onde todas as outras desaguam: o fluxo indistinto, contínuo e asfixiante de informação, da quase divina informação, de todo o tipo, de toda a espécie de intenções. Nesta circunstância dominadora, a partir da qual se manipula e mistifica, a filosofia representa a capacidade de optar, ou seja, de resistir pelo pensamento e pelas suas consequências activas, quer dizer, de respirar. Sobretudo agora, que a configuração projectiva do futuro se desindividualizou. Vive, mas não cometas a ousadia de existir.

patologia do acaso, diário, 181: Um inesperado pedaço de plenitude

2020, Maio, 21. Hoje, quando saí para cigarros, no regresso a casa, decidi tomar caminho pelo parque e enveredar, desprovido de sentido e destino, pelos seus caminhos irregulares sob a luz e o calor do sol. Fiz um passeio demorado, gozando o dia como uma primícia. Há dois meses que não estava tanto tempo fora de casa devido às restrições impostas pela pandemia. Sei que era uma hora da tarde porque a sirene do quartel dos bombeiros ecoou pelo ar. A Natureza eclodia ao meu espírito numa visão única e o seu esplendor, sob uma luz excessiva de existência, comoveu-me profundamente. Fixei algumas imagens com a câmara fotográfica do telemóvel, quis dilacerar do tempo aquele absoluto que me puxava a si e a que eu me oferecia no prazer dos sentidos. Tomei-me de cuidados para não pisar flores. Ocorreu-me que a evolução civilizacional que atravessamos nos vai roubar esta vida por enquanto luminosa. Estamos destinados a viver mas não a existir. Nessa ordem que está para vir, toda a liberdade será castigada. Na contemplação a que me entreguei, senti pena por esse destino que se adivinha. Mas logo compreendi que essa pena era só minha, porque eu, como toda a gente, estamos desde o primeiro dia habitados pelo fim, pela certeza de tudo acabar quando acabarmos. É certo que restará um traço da minha passagem enquanto a memória o consentir. Nunca pensei muito nisso, um historiador sabe que não vale a pena perder o seu tempo a discorrer sobre tal coisa. Mas hoje senti pena, uma forma de pena diferente, uma queda súbita daquele resplendor natural, pela certeza de um dia passar e comigo as minhas memórias e toda a beleza imóvel do mundo e o abraço do meu filho. Nessa altura, devo chamar por ti, mãe, é assim que todos se abandonam à passagem. Foi isto que no meu espírito se passou, hoje, durante o passeio no parque, porque a Natureza e a existência me foram – trespassado por uma «gelada solidão» – de qualquer forma profunda, excessivas. Todavia foi bom, pensando agora que escrevo, porque talvez tenha ocorrido em mim um pedaço de plenitude.
Voa, pássaro, voa.

 

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Jorge Muchagato, Parque, 21 de Maio de 2020

epistemologia do silêncio, um diário da peste, 18: O que nos dizem a história e a razão crítica

Maio, 14 e 18
Todos os dias, na primeira luz da manhã, estão as árvores e os reflexos do sol nas suas folhas agora levemente movidas por um vento brando. Então, os reflexos da luz solar oscilam, de folha para folha, revelando umas, ocultando outras. Nas primeiras horas do meu dia olho as árvores, assim como digo, e desbravo em mim uma esperança que não sei onde está, mas existe sempre, algures no labirinto da cabeça. É, em suma, como se atendesse a uma revelação de qualquer ordem que jamais sei se chagará; mas espero. E fico com as árvores todo o dia a toda a noite, quando desvio o olhar do écran do computador durante o trabalho, antes de adormecer, com as portadas abertas. Existe uma forma qualquer de esperança nesta beleza imóvel, todos os dias diferente, apesar de invariavelmente expectável depois da travessia do sono.

Registei para este diário, há quatro dias, que estamos vivendo no vórtice lento, e por isso pouco natural, de um longo interregno, na suspensão irrespirável que antecede as grandes mudanças, tal como antevê as grandes tempestades. Esta grande mudança é nova, diferente das anteriores que foram caracterizadas por traumas e desordens incontroláveis, marcadas pela fronteira que representa a guerra total. Mas havia uma projecção do futuro, ainda que fosse a última, a da destruição e da morte. O Holocausto, perpetrado pelo primeiro Estado da história da humanidade assumidamente assassino e genocida, é uma excepção; não é irrepetível porque a essência do Mal é o vazio de pensamento, como de diversas formas enunciou Hannah Arendt, mas é uma excepção. A história não se repete, os valores éticos e morais, e outros, é que se reconfiguram, mas o que a história nos ensinou, em termos de mudanças sociais e políticas, deixou de ser possível nos termos que conhecíamos e por onde passava a nossa identidade da desgraça e do Mal. A Segunda Guerra Mundial terminou, na Europa, com a rendição incondicional da Alemanha nazi, há setenta e cinco anos. Em termos de tempo histórico, é pouco mais do que ontem. Vivemos decénios no terror de uma Terceira Guerra Mundial porque os arquétipos vivenciais do mundo permaneciam, não absolutamente inalterados, mas idênticos. Não é verosímil, pela complexidade tecnológica do mundo actual, cujo funcionamento se tornou imprescindível à escala mundial, que se verifique uma Terceira Guerra Mundial. O discurso comum que equipara a luta contra o vírus Covid-19 a uma guerra, utilizando um léxico bélico, tem um significado enorme e não é apenas comodismo de linguagem, pobreza metafórica, incentivo ao “combate” e à coragem. Esta grande mudança que tudo afecta, política, sociedade, cultura, afectividade, que estamos vivendo, faz-se lentamente, mas os seus avanços (chamemos-lhe assim à falta de outra expressão que possa exprimir a temporalidade de que não podemos prescindir no discurso) são firmes e bem estacados, todavia, com a visibilidade considerada necessária para a sua eficiência. O posicionamento oficial e a retórica sobre a evolução da pandemia, ao mais alto nível da política e da influência das recomendações, mudou: espera-se uma medicação eficaz, talvez a vacina nunca chegue, talvez chegue apenas para algumas parcelas da população mundial, talvez nem exista, sequer, o dinheiro necessário para a fabricação de uma vacina destinada ao mundo inteiro. Mas o que significa, o que é, hoje, esse mundo inteiro? A retórica oficial e oficiosa mudou e em meio ano ficámos sem futuro.

Em face da realidade, dos discursos sobre a sua verdade, e da verdade propriamente dita, o que a razão crítica nos diz é que o futuro que tínhamos como nosso, identitariamente nosso, acabou.

 

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Jorge Muchagato, 11 de Maio de 2020

patologia do acaso, diário, 180

2020, Maio, 16. A vida não é o que parece porque não somos o que parecemos. Nem chegamos, sequer, à sombra do enigma. Para que o ser e o parecer coincidam é necessário, como dizia Camus, tornar a existência em si mesma um acto de resistência. Isso significa estar disposto às consequências da verdade radical de uma existência. Nada disto, porém, implica o julgamento; implica, sim, apenas a profundidade da decifração. A verdade anda a par com a decifração crítica e esta consciência clarificadora implica a resistência e a liberdade inerente de conseguir acolher, para além dos ciclos que caracterizam a sua manifestação temporária, o esquecimento, o abandono, o silêncio. (Uma palavra, mesmo que perdida e intocada pela verdade, poderia.) Quando se tem uma existência que possa ter esse nome.

 

depois dos outros de mim

depois dos outros de mim. sei pouco, o abismo fala-me porque eu o contemplo*. da minha casa vejo as árvores, o desenho irregular do sol e da sombra, mas a névoa da respiração nunca se dissipa inteiramente. à noite, a música mistura-se com o grito dos faisões do parque. a minha face diz-me que vou passando, longe. e é tudo.

Auto-retrato, 10 de Maio de 2020

 

 

* «et quand ton regard pénètre longtemps au fond d’un abîme, l’abîme, lui-aussi, pénètre en toi», Nietzsche, Par-delà le bien et le mal, trad. par L. Weiscopf et G. Art, Paris, 1898, 140, p. 92.

epistemologia do silêncio,um diário da peste, 17

Maio, 8
A música, a erudita ou aqueloutra que é a música ancestral dos povos, é a civilização; o teatro e a literatura são a verdade; a pintura e o desenho são o mistério. A humanidade, criadora do enigma e do espelho, suicidária dos mitos, defronta-se, nestes tempos suspensos e mansos, com a dor do retorno ao sangue, que sabe ser uma impossibilidade, ainda que tenha conquistado a liberdade aos labirintos oníricos e torcionários do eterno. As pessoas regressam às ruas, as suas vozes ecoam e desmentem a noite. Todas as descrições dos acidentes da peste são semelhantes, a história no-lo diz. As pessoas desmentem a noite, escarram, e no balanço desmentem também a verdade cujos signos não alcançam; profanam o silêncio que não suportam.