As razões de R.V.

R.V. levantou-se da cama logo após ter despertado do sono. Viu as horas, era cedo, uma hora antes do despertador programado no telemóvel. Veste-se, nada sente, é apenas a vulgaridade da manhã, as calças de fato de treino, a mesma camisola da véspera, segue para a casa de banho, urina, lava a cara com água fria. Nenhuma impressão emocional ascende dos rituais. Toma o pequeno-almoço, bebe o café, fuma o primeiro cigarro e começa a trabalhar. Para não compreender a razão de nada sentir, concentra-se no trabalho e transpõe a manhã, assente na tranquilidade da imposição por que se decidiu. Consegue, o trabalho rende-lhe, as ideias afloram ao seu espírito, sente até um ínfimo entusiasmo que lhe confirma a opção. É uma das estratégias para conseguir começar a escalar a montanha da manhã, o esforço íngreme que todos os dias, sem nada sentir, reúne para escalar o silêncio. O livro em que trabalha agora é um livro de fronteira e transpô-la tanto pode significar a vida como a morte. Não pode afirmar que a realização desse livro lhe traga uma ou outra realidade. Sabe só que é a segunda razão porque não se deixa morrer. Ao princípio da tarde almoça e retoma o trabalho. Rende-lhe o trabalho, mas continua a não sentir nada e a não entender inteiramente porque não sente nada. Para quê pensar; melhor é que o trabalho necessário seja feito e o dia aproveitado. A meio da tarde saiu para a sua volta breve à livraria. Já não se demora na livraria muito tempo, deixou de procurar, continua a lá ir para andar mais um pouco, passa a maior parte do tempo do dia sentado. Regressa a casa pelo caminho do parque e retoma o trabalho. Está a fazer lentas notas de leitura, o tempo e o método em que melhor consegue pensar e organizar ideias para o livro que pretende escrever. Já tem editora, é um estímulo a que se agarra com todas as forças. Progrediu hoje bastante na leitura e nas notas meticulosas. O dia começa a morrer, põe fim ao trabalho e sai de casa para comprar cigarros, ainda tem dez dentro do maço, mas não está certo de que lhe cheguem para a noite, porque o pior é a noite. Também precisa de comprar guardanapos de papel. Nesse lago morto do crepúsculo que lhe muda a casa em noite apesar da iluminação de Natal que tem mesmo em frente da varanda, ocorre-lhe a possibilidade muito verídica de ter que vender todos os livros que possui. A sua biblioteca é constituída por livros que já leu e por aqueles que foram justificados pela intenção de serem lidos. Não é inverosímil que seja forçado a vender os livros e, depois, a cair na rua. Essa trágica antevisão não o comove nem revolta. Nada sente e compreendeu que morrera algures. Essa razão já não conta para o suicídio. Resta a outra razão, aquela a que sempre se agarrou, é-lhe a vida. A jovem médica do centro de saúde toma notas no computador quando lhe diz que todos os dias pensa em matar-se. É afável, está em substituição da médica que o deveria ter atendido. R.V. não sabe, nem faz um esforço imaginativo para calcular o que a médica escreveu nas suas notas. Talvez ideação suicida. É-lhe indiferente, está absolutamente só. No seu ideário, recuar até à infância também é matar-se. Não tem medo, a decisão existe, falta o gesto.