patologia do acaso, diário, 217

2022, Novembro, 17 – Sob a cadência da chuva, o cerco da noite. A lâmpada branca do candeeiro exala uma luz violenta que não permite aos objectos a sua obscuridade secreta, conferindo-lhes o limite de uma sombra demasiado espessa, fazendo com que a forma seja desenhada a lâmina. Existe uma voz que fere o vocabulário e essa voz não aporta em acordo com o meu desejo, essa voz que é o insondável de onde tudo emerge, uma neve eterna alheia ao sol, também um fogo alheio à escuridão; contrários que se digladiam no silêncio que não conseguem deslassar. O cansaço por lapidar indicia-me o sono, a opacidade da respiração que me localiza, certo, a coincidir com a minha sombra, a dúvida constante acerca deste diário, visto que a rotina dos meus dias não lhe dá matéria ou, quando lha dá, não lhe confere pertinência, uma pedra arredondada pelo mar. E, assim, escrevo sobre a repetição do vazio e consinto que esse vazio me contamine e me impeça, num arremedo de paradoxo mal resolvido, de escrever. Então recomeço. Recomeço sempre, até ao impensável de mim e das coisas do mundo, sobre as quais não tenho o desejo da nomeação e, portanto, da posse. A célebre pergunta sobre o tempo e a sua ignota definição. Existe uma solidão certa, coincidente, para que a escrita ocorra, desprovida da contingência do tempo e se torne um objecto que seja o resultado de uma busca incessante do segredo de si mesma.

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