Futebolítica

O fenómeno de massas que é o futebol, em cuja sombra outros fenómenos se projectam e se afirmam social e ideologicamente, é um dado incontornável do quotidiano actual e está voluntariamente presente nas representações individuais e colectivas da realidade, que as toma como espelho de desejos miméticos ou objecto de comportamentos que são, pela força do fenómeno em si, legitimados até ao fanatismo. Este mundo é habitado por estrelas estereotipadas que irrompem nas representações individuais enquanto modelos de vários sucessos desejados que vão da riqueza pessoal a uma sexualidade idealizada. É verdade que são atletas de alta competição e, portanto, com restrições pesadas à sua vida profissional tendo em vista um determinado desempenho. Enchem os estádios com várias dezenas de milhares de adeptos e os seus honorários são milionários. Os futebolistas dos principais clubes são, para muitos pais, o modelo de vida que projectam nos filhos, se estes se interessam pela bola.
Se o futebol se afirma como uma questão de identidade individual e colectiva, torna-se uma questão ideológica paralela à ideologia democrática do regime. No entanto, a ideologia futebolística assume, parece-me, contornos e acções de um tipo fascizante com várias cabeças. É impossível, hoje, que alguém não tenha um clube da sua preferência; que milhares se reúnam num recinto apropriado para saudar e apoiar os chefes desse culto – os jogados, os treinadores, os presidentes desportivos. À semelhança das grandes manifestações de massas do fascismo – em lugares monumentalmente simbólicos – também no futebol existe uma irracionalidade das multidões, motivada não pelo carisma do chefe, mas pelo carisma dos protagonistas e dos seus chefes. Essas multidões, ainda que fraccionadas pelos diversos clubes, aderem a uma mística de que pretendem fazer parte. Mas existe aqui uma diferença fundamental relativamente aos movimentos fascistas e que é o poder de opção em liberdade. Essa cultura fascizante (não afirmo que a cultura de massas do futebol e a sua estrutura é fascista), por outro lado, é uma cultura de inculcação que começa pela infância, enquanto factor de identidade e de aceitação social que legitima tudo quanto diga respeito a um determinado clube. Neste sistema específico de identidade, pessoas há que inscrevem os filhos recém-nascidos como sócios de um determinado clube. A lealdade identitária e a aceitação social legitimam as opções das multidões e a violência inerente que se justifica pelo apego à mística dos seus chefes. A presença do futebol, e de fenómenos a ele ligados, é, na vida quotidiana asfixiante – para além dos canais desportivos específicos, a televisão generalista consagra ao fenómeno apontamentos em programas de entretenimento e, em serviços noticiosos, uma parte considerável do seu tempo de duração. Tudo é notícia no mundo do futebol; a inculcação é pensada e dirigida para os meios de comunicação social. Todavia, sucede que temos a opção de escolha relativamente a uma dada verdade, na qual podemos acreditar ou duvidar, mas é-nos possível escolher. Esta lógica não funciona na sociedade fascizada. O carácter fascizante do futebol e das massas que o apoiam ocorre de dentro do fenómeno para fora: identidades que apelam a uma pertença, violência na qual se deseja participar, também com forma de luta contra o status quo, contra a autoridade que pretende dominar essas massas no espaço público. Em todo o caso, apesar da sua força centrípeta, esta fascização do futebol ocorre independente da liberdade e da democracia gerais do regime, isto é, representa uma escolha, ainda que num universo representado pela fanatização.
A política não podia deixar de ser sensível a este mundo: A política não podia deixar de ser sensível a este mundo: acarinha-o, deseja participar nele, deseja legitimá-lo no sentido de dizer aos eleitores que o Poder não só pode descer ao povo e confundir-se com ele, como a própria máquina do futebol o pode apoiar. O Poder faz-se representar, ao mais alto nível, nos jogos da Selecção Nacional. Trata-se, em suma, de uma realidade onde o futebol e o Poder se encontram. Os dignitários desejam – tudo isto é uma gigantesca materialização de desejos e de expectativas – estando presentes, caucionar a vontade do povo que neles vai votar. Portanto, para a política, o mundo do futebol é uma saga proveitosa. A tal ponto que o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República e o Primeiro-ministro vão assistir, no contexto do Mundial de Futebol que decorrerá no Qatar, aos jogos da Selecção Nacional. Apesar de ser num País como o Qatar, apesar de tudo o que não é pouco… Porém, o Presidente da República considera que «O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa.» É verdade: concentremo-nos no espectáculo de que o futebol e a política partilham, ainda que salpicados de sangue.

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