as memórias obscuras, 2

O passado não é uma continuidade, uma perfeita linha cronológica, estranha ao presente. Assemelha-se mais a um traço absolutamente imperfeito dependente das oscilações psíquicas do presente. Imagens perdidas, sentimentos que têm ainda a força da perturbação involuntária, palavras que ficaram impressas no espírito, uma miríade de impressões que nos momentos mais inesperados emergem da negrura de um esquecimento traiçoeiro. Tenho do meu passado imagens vívidas que os diários de outros anos ajudam a alcançar – representações que as palavras, umas vezes pueris outras vezes excessivamente dramáticas, comprovam o que em mim não existe mais. O tempo passou sobre esses anos e a distância deles comprova uma memória fechada sobre si, mas não estanque. Todavia, a revisitação do passado a partir de um determinado tipo de testemunhos, é um exercício que para mim exclui, em muitos casos, a saudade. É um exercício de escrita, um inevitável reencontro de fantasmas, uma redescoberta mediada pelo tempo. Seja o que for, e depois de várias hesitações, decidi abrir os diários, apesar de incerto do percurso.

1993, Agosto, 23 – Por estes dias, estava a aprender gravura com um dos mais importantes gravadores portugueses, David de Almeida (1945-2014). O processo de realização de uma água-forte, repleto de minudências e de perspicácia, fascinou-me de imediato pelas suas potencialidades plásticas. Os sucessivos níveis de tratamento da chapa metálica requeriam uma perícia que me agradava alguma vez vir a conseguir dominar, visto que assistira algumas vezes ao processo e porque o trabalho de David de Almeida era objecto da minha admiração. Nesse tempo, depois de ter concluído o mestrado, eu estava decidido a enveredar pelas artes, desejo muito antigo que nunca tivera oportunidade de desenvolver sob orientação de um artista. Pintava e desenhava muito. A arte fora a minha mais enraizada e antiga identidade, todavia, encontrei pouco reconhecimento em relação ao meu trabalho – tinha a dolorosa impressão de que consideravam a minha arte como um capricho inconsequente. O convite de David de Almeida para realizar uma água-forte veio corresponder ao reconhecimento que eu desejava para conseguir continuar a pintar e a desenhar. Quando entrei, pela primeira vez, no seu atelier do Palácio dos Coruchéus, apercebi-me da firmeza de querer pertencer a esse mundo dos artistas, sem o receio de ser tomado pela turbulência da loucura. Mas não era apenas o mundo artístico, era encontrar outras pessoas que tal como eu tivessem a arte como uma expressão inquebrantável. Uma ideia pueril que muitos anos mais tarde haveriam amargamente de quase destruir em mim. A prática da arte, nesse tempo, colidiu com a história da arte, tal como eu então a entendia – uma ideia que não desapareceria tão rapidamente e, pelo contrário, mais tarde, haveria de se reestruturar. Mas nessa altura, a ocasião de aprender gravura com tal mestre exacerbou em mim a certeza de um desejado caminho novo.

O desenho a buril na chapa de metal, para a água-forte está concluído. O resultado é simplesmente magnífico e a emoção de ter criado um objecto artístico de todo novo para mim é indescritível. É uma descoberta – do objecto e de mim. De súbito, na magia dos traços que o buril rasga na camada resinosa que pelo calor aderiu por completo ao metal; [ilegível] um sentimento de quase absoluta evasão temporal, recuo idealmente no tempo, até à mística e rústica circunstância da oficina e da manualidade mais ancestral da arte.

1993, Agosto, 25Hoje será a impressão da água-forte no Atelier de David de Almeida, à tarde. Estou ansioso pelo resultado final do “Dom Quixote depois da batalha contra os moinhos de vento”. Permanente estado de inspiração. Ideia para uma série de pequenos quadros a que poderei chamar “Ancestralidade da mão”. Uma série de quatro ou cinco quadros constituídos por pequenos pedaços de tela colados a um suporte de madeira tratada. O tratamento estético-temático será inspirado na arte medieval, em particular na pintura de Bosch, na pintura dos primitivos flamengos e italianos. Foi aliás olhando a reprodução de um pormenor das Tentações de Santo Antão num cartaz de um congresso de escritores que a ideia me ocorreu. Tenho ainda como ponto de referência / inspiração a pintura miniaturista e a estética do pormenor. Uma ideia me tem ocupado o espírito nesta última semana: uma série de desenhos inspirados na figura de Dom Quixote, adveniente do tema que, afinal acabei por escolher para a água-forte. Fiquei com uma curiosidade imensa pelo romane de Cervantes. Hoje mesmo não resisti ao entusiasmo e depois de termos encontrado uma prenda para a X (que faz anos na próxima sexta-feira 27) eu e a Y fomos à Livraria Barateira buscar a edição do Cículo de Leitores (1978) ilustrada por Gustave Dorée. Comprei ainda um pequeno catálogo de gravura polaca contemporânea que esteve [exposta] na Fundação Calouste Gulbenkian em 1981. Será ainda de ver a possibilidade de comprar um livro da editora Taschen sobre a pintura flamenga para trabalhar na série “Ancestralidade da mão” (título hipotético). A questão do tríptico (com as caixas de rolos fotográficos) está praticamente concluída.

1993, Agosto, 26
Placa = cobre (forte)
Ácido = 3 para 1
20 min. + 10 + 10 [aplicação de betume judaico e sua secagem nas zonas de maior erosão do ácido que foi fortificado]
+ 10 m. + 10 m. + 15 m.

À tarde trabalho no Atelier de David de Almeida, sobre a chapa de cobre onde está desenhado o “Dom Quixote depois da Batalha contra os Moinhos de Vento. Observo atentamente. Sinto-me inibido: é como se estivesse a roubar segredos. O atelier de um pintor é um lugar sagrado. O banho da placa de cobre no ácido, diluído em água na proporção de 1 para 3, demorou, no total, cerca de 75 minutos. E não ficou concluído. Os traços da zona superior do desenho, feitos de maneira mais leve, não gravaram inteiramente, sobretudo a parte sombreada do chapéu de D. Quixote. Trata-se de um trabalho extraordinário. Na chapa, o efeito dos traços que se formam depois do ácido ter penetrado pelo espaço que na camada resinosa fica livre (o espaço reduzidíssimo do risco sobre a placa de gordura), é quase um efeito de escultura, de baixo-relevo. As potencialidades da água-forte são imensas. Se tiver, despois desta primeira experiência, a possibilidade de fazer uma outra água-forte, o desenho do Infante D. Henrique tem, pelo que já vi nesta placa, potencialidades plásticas e estéticas bastante interessantes. Mas estou bastante curioso pelo resultado final desta água-forte. Aprendi ainda uma outra coisa: o que é o buril e o que é a ponta seca. Na água-forte utilizei uma ponta seca.

J.M., D. Quixote depois da batalha contra os moinhos de vento, água-forte, 1993

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