patologia do acaso, diário, 224. Da eternidade

2022, Novembro, 29 – A escuridão desta noite é densa, logo desde o seu princípio, não se distinguem as lajes do chão, o caminho entre as ervas húmidas, os degraus que antecedem a entrada em casa, a lua está invisível e poucas estrelas que não sei identificar, marcam a abóbada celeste. Estrelas eternas como a vida. Mas de que eternidade pode ser feita a vida, visto que a eternidade é uma totalidade impensável e intocável? Em que consiste, em nós, a noção de eternidade? E a palavra que a nomeia? Sabemos, todavia, ou julgamos saber, que a eternidade, segundo um pensamento intuitivo, é um excesso do tempo, uma realidade inumerável, sem matéria nem representação. Toda a ideia empírica da eternidade é-lhe estranha, mas desejamo-la e vivemo-la num excesso de emoções. A todos caberá um dia a queda de uma laje sob um passo desconhecido na ordem do tempo. A laje abrirá a terra e será o silêncio absoluto, o último. Agimos, não para adiar essa laje que resvalará sob os nossos pés, mas para marcar os nossos passos até ela, para pensar o indizível, para descer à obscuridade e à sua verdade. Depois, será o encontro com a eternidade. A ideia da eternidade aproxima-se da ideia da morte, sendo que a primeira não é representável e a segundo tem sido um dos grandes temas da arte e da literatura, da história. De que eternidade pode ser feita a vida? Talvez de tudo aquilo que no nosso pensamento suficiente ultrapassa os objectos temporais, a sua representação e a sua simbologia. Das paixões. Encontramos nas paixões uma força da eternidade, porquanto o desejo as torna intransmissíveis dentro de um mundo que é apenas o seu. A eternidade é na vida um desejo e um agir superlativos, porém, indizíveis – apenas o símbolo lhes faz jus. Muitos dos momentos contidos nessa simbologia serão vulgares, muitos desses silêncios advirão da melancolia e da ausência de palavras ou de uma impressão de felicidade inabalável; mas nesse feixe da existência, que não quebra, e está para além das circunstâncias, sempre se procura, quantas vezes, uma asa da eternidade que nos toque no ombro. Mas a eternidade é também o lugar da morte quando se a entende como um eterno descanso. A vida pode ser feita de eternidade, na medida das especulações e dos desejos do sujeito enquanto ser temporal que pode eximir-se, na sua consciência do tempo, da realidade objectiva. O que na vida existe de manifestação da eternidade é aquilo que nela se consuma de excepcional dentro do tempo comum. O indizível que pensamos mas não sabemos explicar; o que existe antes de uma palavra, antes de um gesto, antes de uma acção; uma eternidade, em suma, significante de um estado que não carece do sentido do tempo nem do espaço. Suponho ser isto que preenche a noção de eternidade e, por consequência, uma realização apta para a imortalidade. Mas, seja aquilo que for a eternidade, a vida não a desconhece por inteiro até que a laje nos falte sob os pés.

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Johannes Vermeer (+1675), Vista de Delft, óleo sobre tela, 1660-1661, Hague, Países Baixos, Museu Mauritshuis

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