O mar de Outono

Desafiei o mar revolto para que a espuma das ondas que embatiam com violência contra o paredão me tocasse. Antes, na praia anterior que desenha uma pequena baía, um bando de gaivotas, nos breves espelhos de água do areal, esperava os despojos do mar, algumas erguiam-se no voo. Perto, o mar desliza pelas escadas de cimento do caminho marítimo. Um palacete antigo, acima do paredão, alcandorado em rochas, guarda todas as memórias do mar no tempo. À medida que a maré se eleva, até perto das quatro horas da tarde, as ondas começam longe e os irregulares traços de espuma vão definindo a sua ferocidade antevista. Este mar chama-me. A placidez do mar de Verão, em que as pessoas que enchem a praia se banham sem medo, acende-me reflexões, elabora-me perguntas, questiona-me sobre o destino, a vanidade e o tempo das vidas. É o sol e as águas em matizes de azuis inocentes que reflectem uma luz intensa. Olhar esse mar de Verão fere os olhos e prefere-se o caminho de volta, de costas para o sol. Mas este mar de Outono chama-me no absoluto da sua ferocidade sublime. Penso em naufrágios desastrosos e imagino um veleiro adornado cm os mastros partidos e as velas rasgadas. Estas tragédias marítimas fascinam-me deste a infância e usava pintá-las, detendo-me nos pormenores que poderiam acrescentar mais horror à cena. Lembro-me agora de Le Radeaux de la Méduse, de Géricault. Dois náufragos acenam para um navio que quase não se vê e que no quadro, ao contrário da realidade não os vai salvar, Géricault transformou-o numa película impossível. Este mar de Outono, revolto, é verde das areias que fustiga e arrasta consigo, deixando a descoberto as rochas que o Verão cobrirá de novo. Caminho sobre as manchas de areia que o mar projecta no paredão quando o galga. As ondas embatem na pedra com toda a força e, quando refluem, fundem-se com a onda que se forma, criando uma parede curva de água que, quando encontra o paredão, levanta uma alta parede de espuma. Caminho lentamente, sem reflexões nem perguntas, fora de qualquer noção do destino, apenas situado numa estranha contemplação a partir da qual o mar me atrai com a violência de um vórtice. Estava capaz de me deixar cair ao mar cedendo ao fascínio da opressão das águas. Que orgulho inútil. O som do mar feroz atordoa o que não penso, guia-me os passos. Em alguns lugares do passeio tenho de esperar o intervalo das ondas mais pequenas para prosseguir caminho, não por medo, pois os sapatos já absorveram a água do mar que resta em pequenas poças na irregularidade das pedras do paredão. Haveria muita gente por aqui, no Verão, quando o absoluto do mar é de outra natureza e o seu mistério nos devolve a terra. Hoje, apenas bancos vazios.

Fotografia: J.M., Estoril, 24 de Novembro de 2022

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