Diário, 265

A noite nada debela, a si tudo aporta, involuntariamente e num silêncio estratigráfico, como as marés que se repetem numa ordem natural cuja força é diferente em acordo com as estações do ano. A noite revela-nos a terra do abandono, a névoa do esquecimento que se dissipa e trai. Mas a noite não tem em si um acordo; é um caos ou uma série de gavetas por enumerar; um movimento ou um desejo; um lento vórtice que carece de sentido evidente, que instala entre o riso e a mudez; entre uma nebulosa e o resplendor do ouro. Da noite se espera a expectativa da decifração, mergulhamos nela como um consolo ou um desespero. Os seus limites são incomensuráveis, o seu conturbado ou ameno miolo um vagar de pensamentos e de intuições onde os fragmentos da experiência eclodem e se confrontam como relâmpagos, como espelhos, como lagos estagnados e virgens cuja profundidade é uma outra noite, ou a noite ela mesma na totalidade das suas formas. A dramaticidade da noite, ou o seu êxtase, surgem como o sorriso intocável do anjo da Catedral de Reims que agrega em si a noite e o dia, a sombra e a luz, a pacificação e a tempestade; um sorriso que suporta as trevas. Já a obscuridade de Rembrandt é conhecimento puro. A noite feérica e melancólica de Van Gogh é uma paragem no tempo aguardando um futuro que o pintor não vislumbra, que é, em suma, inexistente, ou, melhor, se encontra prisioneiro das circunstâncias da sua vida. A angústia criativa que a noite traz consigo é o drama da incapacidade de esfacelar o silêncio, qualquer que seja a nossa localização, as nossas circunstâncias. Nada existe de mais ancestral e de mais esboçado do que a noite. Como a noite de Munch. Nada existe de mais misterioso do que a noite. Como a arte, o seu indecifrável é um dom dos nossos sentidos.

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