patologia do acaso, diário, 197

2021, Julho, 21. Agora, quem detenha o elevado montante exigido, já pode viajar para além da atmosfera, permanecer no espaço durante cerca de dez minutos, e regressar à Terra. Os noticiários, na televisão, anunciam o começo do «turismo espacial», luxo que alguns se poderão dar. Ontem foi um punhado deles. Apesar de ter sentido simpatia pela astronauta octogenária, Wally Funk, à qual o machismo de há sessenta anos impediu a realização da viagem, assim como a outras mulheres que integravam um programa especial, os outros, todos me pareceram ridículos, nas cabriolas dentro do módulo e, sobretudo, nas declarações feitas após a aventura. Não é difícil compreender que nada disto é tão simples como parece. O futuro não está apenas como suspenso; apresenta-se indecifrável à vontade que o projecta. E acorre-me ao espírito a reflexão de Stefan Zweig a propósito do mundo que acabou com a Primeira Grande Guerra: «Ninguém acreditava em guerras, em revoluções e subversões. Todo o radicalismo, toda a violência pareciam não ser já possíveis numa época de razão. Este sentimento de segurança era o tesouro mais desejado por milhões de pessoas, o ideal de vida comum. Só com esta segurança se podia considerar a vida digna de ser vivida, e círculos cada vez mais amplos ambicionavam participar desse precioso bem.» Mas também era verdade, para além de outros factores que a história explica, o que Zweig escrevia mais adiante: «Esta tocante confiança na capacidade de cercar a vida com uma paliçada sem a menor brecha, evitando assim qualquer golpe do destino, enfermava, apesar de toda a solidez e humildade da concepção de vida, de uma grande e perigosa presunção.» Não basta poder ir ao espaço exterior, é preciso saber que espaço existe dentro de si – é esse ser que define a aventura.

Wally Funk em fotografia não datada. Space.com.

Biografia da noite / 10 : de ars pictura

Não me desvio da minha velhice nem lhe procuro veredas
falsas que me iludam a crueza da face. A manhã nasce no espelho,
repleta de minúcias e como de um retrato a paisagem de fundo,
além do arvoredo e de campos de flores bravias, a margem
do rio sem fim. Sou no reflexo tudo aquilo a que me assemelho

e nada mais e nada menos.

Jorge Muchagato, Homenagem a Velázquez, 17 de Junho de 2021