Diário, 295

2023, Dezembro, 23 e 26 – Somos os dias e a sua luxuriante visibilidade; a matéria restrita do tempo, a sua exacta, implacável medida. Decorremos, entre a realidade e o mito, mas é deste, muitas vezes, que nos alimentamos, é neste que nos iludimos e por fim é nele que nos perdemos, nós que estamos destinados à terra ou ao fogo. Todavia, precisamos dos mitos, representam a nossa outra metade, divididos como somos, entre a realidade e a fantasia. Precisamos dos mitos para sobrevivermos inteiros perante o que somos e a angústia de o sermos ausente de explicações. Depois, existem as palavras, as palavras que são, elas mesmas, no íntimo dos seus significados, denúncias involuntárias da verdade; é por isso que pertencem ao domínio da traição. Quer dizer, ao reflexo e, enfim, no seu último grau de cansaço, ao silêncio que salva, ao silêncio onde ecoam. As palavras mitificam-nos, têm esse desmesurado poder, essa insuspeitada fraqueza. A verdade que das palavras permanece é no silêncio que vive depois, com a lentidão do tempo interior, que as guarda. Mas perduraremos, ainda que o tempo tudo acabe por consumir e à mudez resuma o mundo.

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