Fragmento

A densidade do tempo. Sentado no sofá olho as estantes repletas de livros na obscuridade que resulta da luz localizada do candeeiro sobre a mesa de trabalho. Ao fundo existe outro candeeiro, mais pequeno, mas está apagado, uso-o quando vou a essa parte do arquivo procurar um livro. A densidade do tempo manifesta-se, também, no vazio iminente que desce sobre as descrições inconsequentes que constituem um pretexto. Os dias convergem para a noite intacta, que os aceita esfacelados, e procura conferir-lhes da matéria um sentido, mas este reside na terra que nos define. Sim, é verdade que nessa densidade do tempo, nesse sentido da terra, existem momentos perenes de felicidade que fazem esquecer, precisamente, o tempo e a terra. Mas eles voltarão, no intervalo. Há um desenho obsessivo que permanece e parte. Assim sucedia nos desenhos da minha infância, casas e navios, veleiros antigos e depois, mais tarde, a obsessão de procurar no desenho os rostos de Cristo e de Dom Quixote. Existe uma sabedoria transcrita na vivência do tempo, nos seus fragmentos e na densidade do conjunto. Ao contrário do que sucede com o corpo, consideramos o tempo como poros de uma pele que se vão fechando, assim dificultando gradualmente a respiração e arrastando-nos para a dificuldade do entendimento das coisas. A densidade do tempo desafia, sem escrúpulos, a nossa força moral, o cansaço do caminho. As casas antigas eram construídas em acordo com o tempo; paredes largas, fenestrações medianas, sótãos misteriosos, lareiras imensas, cozinhas grandes. A densidade do tempo é habitada por desejos e ingenuidades, em suma, pelas paixões. O tempo é intocável e é nele impossível fazer os círculos que perturbam a água.

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