patologia do acaso, diário, 190

2021, Abril, 11. Pela manhã, cedo, o perfil das nuvens contrastava numa luz intensa, pois umas anunciavam chuva e outras eram trespassadas pela claridade do dia incipiente. No ar, o rasto ainda fresco do abandono da madrugada. Os dias têm vencido sem hesitações de maior, transcorrendo por inteiro ocupados pelos dois gigantescos e minuciosos trabalhos a que me propus. Não penso, prossigo sempre, porque se pensasse, nos ínfimos momentos em que a interrogação do sentido se desoculta, abriria o precedente da derrota pela contingência de um isolado lampejo de cansaço de ser, e isso não me posso permitir. Suponho que tenho vindo a solidificar uma força moral que não me permite a sombra momentânea de cair e que essa força moral advém da solidão, a fonte onde bebo; estou sozinho comigo, faço as contas e não me permito ceder. Não tenho a segurança ontológica da religião ou de qualquer tipo de culto e a simples ideia da existência de Deus é-me intolerável; não pretendo enganar-me quanto aos limites da condição humana. Eu sei que a fé de natureza religiosa confere à vida um sentido, um conforto e uma esperança, mas eu, não só perdi tudo isso como tal esboço de consolo se me tornou incompreensível, pois a consciência do latente labirinto da culpa que a tal acreditar subjaz ergue em mim uma firme recusa. O ser humano deveria ser capaz, deveria ter a coragem de se libertar de todo o conceito e de toda a forma de religião; deveria, em suma, ter a força moral suficiente para assumir o seu destino.

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Quase não assisto a emissões de televisão, pois o meu desinteresse pelas coisas do mundo é praticamente completo; entenda-se, todavia, que tal desinteresse resulta apenas de uma defesa, de uma rejeição das agressões que nos cercam e tocam e não de uma atitude qualificada por qualquer ideia de superioridade. Quase tudo oscila entre os extremos do drama e do ridículo, preenchido por uma linguagem de vocabulário limitado e repetitivo. No entanto, há alguns dias, depois do jantar, demorei-me um pouco a assistir a noticiários nas diversas estações, levado mais pela curiosidade do que pela vontade, pois, de uma forma geral, a televisão é-me praticamente insuportável e os poucos canais temáticos que me interessavam estão transformados em atoleiros de quinquilharia e os documentários históricos são raros. E fiquei cansado de ouvir, nas estações televisivas portuguesas, “tamém” em vez de “também”, “sôtor” em lugar de simplesmente “doutor”, o excesso de uso das expressões “esta matéria”, “à conversa”, “nomeadamente”. E, depois, a presença nauseante do futebol e dos seus heróis nacionais. Os programas que versam literatura parecem exercícios de Leçons de Ténèbres, sem espontaneidade nem inteligência dialéctica por parte de quem os conduz. As telenovelas portuguesas são um sufoco de vulgaridade insuportável e certamente um exercício penoso para alguns dos seus melhores actores, pois são todas más sob qualquer ponto de vista: histórias que se repetem, falas previsíveis, personagens inverosímeis, universos narrativos que assentariam bem no Portugal do Estado Novo, com os seus patrões – o “senhor” e a “senhora”, os “meninos” – e respectivos serviçais, tudo enquadrado num solar à “antiga portuguesa”. E todavia, nada de Teatro. Concursos histriónicos. A linguagem política, vulgarizada e infantilizada até ao limite do ridículo. Mas… o que pode esperar-se? Pouco mais do que “isto”; a televisão nada tem a dizer, não é hoje feita para isso. As audiências confirmam que essa entidade demasiado genérica que é o povo, gosta e aplaude.

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As pessoas compreendem, com demasiada rapidez, que conhecem as outras que consideram como mais próximas de si, por esta ou aquela razão, ou por uma história comum. Mas quem pode ambicionar conhecer a condição humana se a si não se conhece com suficiente profundidade? Quem pode ambicionar conhecer os outros, se considera completo o conhecimento de si? Quanta gentileza e compreensão se encontra a polir a mais enraizada arrogância. Há sinais que nunca chegam, significados que nunca são expressos, e essa ausência de movimento tem uma razão, obscura e distante, quase ilegível pela simulação, mas tem. Essa razão desemboca no silêncio que é um fim em si, uma afirmação que o tempo vai desocultando e repõe no lugar da conveniência. Não é por se falar que se contraria o silêncio; na verdade, em certos casos de comunicação entre as pessoas, a linguagem reveste-se de um silêncio profundo que é uma forma de ser. Esta é, provavelmente, a forma mais comum de as pessoas decidirem, conscientemente, enganar-se ou, para todos os efeitos, trair-se.

patologia do acaso, diário, 189: a liberdade

2021, Abril, 10. O silêncio da noite e a obscuridade da casa onde escrevo, interpelam-me, ouço o ritmo da minha respiração, sinto na língua, envolta em saliva como um lodo, o esmalte dos dentes, na escuridão exterior ecoa o ladrar perdido de alguns cães; dentro do silêncio, fito os planos de sombra que escapam à luz fraca do candeeiro na mesa e envolvem estantes e livros; o meu pensamento está repleto de respostas à intemporalidade desse silêncio, de perguntas também, à obscuridade natural e à obscuridade de mim, ao insondável de mim, esse ser na raiz da respiração que torna tensas as cordas vocais mudas, pesado o externo sob o qual uma névoa densa envolve os órgãos vitais, o coração, os pulmões. A noite devolve-me, intacto, e todos os dias recomeço nesta carência de palavras e, então, é como se eu me encontrasse, imóvel, à beira de uma ravina, tocado no rosto por um vento marítimo e frio, numa ausência nocturna, testemunha das acções e das coisas do mundo. O vazio, a ausência de razão e um cansaço de ser, que o fim da tarde anuncia e a noite sempre agrava, preenchem o meu espírito. Não devia consumir-me por esta necessidade de escrever, uma vez que estou longe e o horizonte é a expectável terra de ninguém desta espécie de guerra minha. Mas, «escrevo para criar um espaço habitável da minha necessidade, do que me oprime, do que é difícil e excessivo», é por isto e por vingança, porque toda a escrita é uma vingança. Estive seis meses sem escrever. Todavia, persisto, porque uma parte da minha existência apenas fala nas palavras fixadas e nos seus significados; persisto, porque todas as noites esse silêncio anterior à origem, que me conhece, me interpela e é por mim interrogado, ainda que uma parte considerável das perguntas não alcance a sua forma e seja apenas uma poeira cósmica dentro de mim, envolvendo-me o pescoço pelo interior; este silêncio e todos os outros silêncios que me são estranhos, mas não suportam esta substância de mim. É uma questão de linguagem e de significados e são essas as fronteiras de mim. Devia possuir a força moral de não escrever e permitir, por ausência de pena, o império do silêncio e do esquecimento. Mas isso não é possível, porque entendo no espelho o tempo sulcando-me o rosto, porque preciso de escrever e não consigo eximir-me a esta fala cujos motivos não procuro, porque eu sou a razão, e essa razão, por via das circunstâncias da vida a que me propus, é intransponível. Ao crepúsculo, as sombras das árvores na fachada poente da casa mudam todos os dias. À medida que a luz do sol se prolonga, essa projecção dos pinheiros e da palmeira transfigura-se ao meu olhar, no seu acordo com a cor da parede, em manchas pictóricas que em poucos minutos se deslassam e desaparecem. A distância do sol consuma-se, mas permanece ainda uma luz ténue que demora a morrer perante a noite. Somos a matéria de um enigma e de um mistério sem princípio nem fim, desprovidos do Verbo inicial que inventámos. Estou hoje ciente de que a vida, pensada em termos gerais e abstractos, e as galáxias e o Universo em expansão, carecem de todo o sentido e nem tão-pouco é razoável que o tenham. Por sobre o contingente e o decidido, não podemos afirmar outro destino que não seja o do fim, e que sobre esse acontecimento objectivo que desconhecemos mas que se afirma como o ser de nós mais pensável, não temos qualquer poder. Então, «escravos errantes da vida», lutamos, com ou sem consciência disso, por uma qualquer forma de imortalidade, as mais das vezes fundamentada numa vulgaridade que não reconhecemos. Somos, portanto, detentores de uma vida que sabemos, desde muito cedo, estar destinada a um fim natural, à semelhança de todos os seres animados. Esta constatação, sobre a qual pouco pensamos, ou à qual nos escusamos, por diversas e complexas razões, a um tempo reflexivo suficiente, não torna, necessariamente, a vida absurda, nem justifica que nos entreguemos, sem condições, a um destino colocado fora de nós. E estou ciente, ainda, que apesar dessa abstracta ausência de sentido, a vida traz consigo um objectivo que é ao meu entendimento muito claro: o conhecimento de si, a única forma de liberdade inteira a que podemos aspirar se estivermos dispostos a pagar, não um tributo, mas um preço que oscila, sempre, entre o objectivo e o absurdo. É a solidão a que todo o conhecimento filosófico conduz, é a liberdade. «La spéculation philosophique est une œuvre spéciale, qui s’accomplit au-dedans de l’esprit individuel, et où le concours étranger est aussi inutile que le conseil d’un ami le serait au poète absorbé dans ses fictions et ses rêves. Si le poète ne peut puiser que dans son inspiration personnelle, le penseur ne doit vivre que dans les profondeurs de sa méditation, et son système ne doit être qu’un fidèle reflet de ce que son génie renferme de plus intime et de plus particulier.»

Citações :
Vergílio Ferreira, Pensar, Venda Nova, Bertrand Editora, 1992, p. 35.
Álvaro Duarte Simões, poema do fado Algemas, cantado por Amália Rodrigues.
Friedrich Schleiermacher, Mémoire sur Diogène d’Apollonie, 1811, citado em Georges Gusdorf, De l’histoire des sciences à l’histoire de la pensée, Paris, Payot, 1977, p. 323.

Fotografia: JM, Abril de 2021

Cartas R.V. Um ensaio

[décima carta]

Abril, 1

Pela manhã muito cedo, sob a luz original do dia, respiro o último frio da noite e oiço o som das asas dos pássaros.
Escrevi-lhe, numa carta anterior, que desejo estar o mais longe possível do mundo e do seu movimento. Saio de casa apenas para os cigarros e de longe em longe compro algum jornal que traga assunto do meu interesse. Mas o que significa, de facto, estar o mais longe possível do mundo? Na verdade, verifico, à medida que o meu estudo progride e se aprofunda, que para além das razões que possam estar no fundamento desse desejo, tal propósito representa uma impossibilidade irredutível, dado que estar distante do mundo continua a significar estar no mundo, pois eu sou, nas modulações da minha consciência, um mundo determinado cuja existência pressupõe, precisamente, um sistema do mundo no interior de cujas qualidades prossigo o conhecimento próprio, o conhecimento dos outros e o conhecimento das coisas. Assim como não me é possível estar fora do mundo, igualmente não posso existir no exterior do tempo nem das suas mudanças próprias; ora, para todos os efeitos, a minha percepção do tempo significa uma percepção do mundo, e ambos, tempo e mundo, pela natureza das suas qualidades que vão da historicidade ao acidental, em nenhum dia são os mesmos. A consciência desta variabilidade quer dizer que não posso fixar-me, que é impossível permanecer imóvel, e a consciência dessa realidade é a substância de um determinado mundo, que sendo perceptível é relacional. Creio, assim, que não me encontro perante uma recusa do mundo, mas dentro de uma relação com o mundo, e é essa relação que deve ser objecto do meu pensamento; quais as suas causas, quais as suas qualidades neste momento. Forçoso é, pois, concluir que tenho persistido num erro ou, pelo menos, insistido numa perspectiva desfavorável sobre a realidade, deturpada, mesmo, não devo ter receio de o admitir. Não é inteiramente o mundo que me perturba, mas a representação que tenho de mim e dos meus pontos de vista sobre o mundo e a sua estrutura humana. Nada, porém, obsta a que não exista um determinado tipo de distância que é uma opção intelectual, mas que é, também, o resultado de limitações materiais. A física diz-nos, desde Aristóteles, que a totalidade, o todo e o particular, do natural e do humano, é excepcionalmente complexa. E se penso dentro de um determinado quadro mental geral, por muito fragmentado que esse quadro mental hoje seja, é uma impossibilidade absoluta pensar fora do mundo. O que posso fazer, no limite, é pensar-me enquanto ser-em-si individual, autónomo e construtor do seu destino a partir da estrutura de um dado pensamento, ainda que esse pensamento não corresponda às orientações gerais da vida comum e a critique. O que também posso fazer, no limite, é assumir uma solidão enquanto consequência dessa crítica que, em todo o caso, pressupõe sempre um quadro relacional. Quando utilizo a rede social para expor as ideias dessa crítica, parto sempre da consciência da existência de um receptor qualquer.
Mas a verdade, agora que retomo a escrita, ao cabo desta especulação, e pela janela contemplo a noite, esse desejo de estar longe do mundo regressa, intacto e repleto de sentido, alheio a toda a filosofia, e a um tempo preenchido de solidão e de plenitude.

com a gratidão de sempre,
creia-me,
R.V.