2021, Abril, 11. Pela manhã, cedo, o perfil das nuvens contrastava numa luz intensa, pois umas anunciavam chuva e outras eram trespassadas pela claridade do dia incipiente. No ar, o rasto ainda fresco do abandono da madrugada. Os dias têm vencido sem hesitações de maior, transcorrendo por inteiro ocupados pelos dois gigantescos e minuciosos trabalhos a que me propus. Não penso, prossigo sempre, porque se pensasse, nos ínfimos momentos em que a interrogação do sentido se desoculta, abriria o precedente da derrota pela contingência de um isolado lampejo de cansaço de ser, e isso não me posso permitir. Suponho que tenho vindo a solidificar uma força moral que não me permite a sombra momentânea de cair e que essa força moral advém da solidão, a fonte onde bebo; estou sozinho comigo, faço as contas e não me permito ceder. Não tenho a segurança ontológica da religião ou de qualquer tipo de culto e a simples ideia da existência de Deus é-me intolerável; não pretendo enganar-me quanto aos limites da condição humana. Eu sei que a fé de natureza religiosa confere à vida um sentido, um conforto e uma esperança, mas eu, não só perdi tudo isso como tal esboço de consolo se me tornou incompreensível, pois a consciência do latente labirinto da culpa que a tal acreditar subjaz ergue em mim uma firme recusa. O ser humano deveria ser capaz, deveria ter a coragem de se libertar de todo o conceito e de toda a forma de religião; deveria, em suma, ter a força moral suficiente para assumir o seu destino.
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Quase não assisto a emissões de televisão, pois o meu desinteresse pelas coisas do mundo é praticamente completo; entenda-se, todavia, que tal desinteresse resulta apenas de uma defesa, de uma rejeição das agressões que nos cercam e tocam e não de uma atitude qualificada por qualquer ideia de superioridade. Quase tudo oscila entre os extremos do drama e do ridículo, preenchido por uma linguagem de vocabulário limitado e repetitivo. No entanto, há alguns dias, depois do jantar, demorei-me um pouco a assistir a noticiários nas diversas estações, levado mais pela curiosidade do que pela vontade, pois, de uma forma geral, a televisão é-me praticamente insuportável e os poucos canais temáticos que me interessavam estão transformados em atoleiros de quinquilharia e os documentários históricos são raros. E fiquei cansado de ouvir, nas estações televisivas portuguesas, “tamém” em vez de “também”, “sôtor” em lugar de simplesmente “doutor”, o excesso de uso das expressões “esta matéria”, “à conversa”, “nomeadamente”. E, depois, a presença nauseante do futebol e dos seus heróis nacionais. Os programas que versam literatura parecem exercícios de Leçons de Ténèbres, sem espontaneidade nem inteligência dialéctica por parte de quem os conduz. As telenovelas portuguesas são um sufoco de vulgaridade insuportável e certamente um exercício penoso para alguns dos seus melhores actores, pois são todas más sob qualquer ponto de vista: histórias que se repetem, falas previsíveis, personagens inverosímeis, universos narrativos que assentariam bem no Portugal do Estado Novo, com os seus patrões – o “senhor” e a “senhora”, os “meninos” – e respectivos serviçais, tudo enquadrado num solar à “antiga portuguesa”. E todavia, nada de Teatro. Concursos histriónicos. A linguagem política, vulgarizada e infantilizada até ao limite do ridículo. Mas… o que pode esperar-se? Pouco mais do que “isto”; a televisão nada tem a dizer, não é hoje feita para isso. As audiências confirmam que essa entidade demasiado genérica que é o povo, gosta e aplaude.
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As pessoas compreendem, com demasiada rapidez, que conhecem as outras que consideram como mais próximas de si, por esta ou aquela razão, ou por uma história comum. Mas quem pode ambicionar conhecer a condição humana se a si não se conhece com suficiente profundidade? Quem pode ambicionar conhecer os outros, se considera completo o conhecimento de si? Quanta gentileza e compreensão se encontra a polir a mais enraizada arrogância. Há sinais que nunca chegam, significados que nunca são expressos, e essa ausência de movimento tem uma razão, obscura e distante, quase ilegível pela simulação, mas tem. Essa razão desemboca no silêncio que é um fim em si, uma afirmação que o tempo vai desocultando e repõe no lugar da conveniência. Não é por se falar que se contraria o silêncio; na verdade, em certos casos de comunicação entre as pessoas, a linguagem reveste-se de um silêncio profundo que é uma forma de ser. Esta é, provavelmente, a forma mais comum de as pessoas decidirem, conscientemente, enganar-se ou, para todos os efeitos, trair-se.