patologia do acaso, diário, 214

2022, Novembro, 8 – No mais profundo de se ser não encontramos senão uma obscuridade que nos cegaria se lá conseguíssemos chegar. E se o todo de nós fosse desvendado, essa totalidade original, encontrar-nos-íamos em face do nada, pois não desce a tal profundeza tudo o que somos. O caos que habita o nosso ininteligível está selado. Se alguém houvesse que quebrasse esse selo, enlouqueceria, encontraria o não-ser. E assim se qualifica o eterno mistério de nós. É a esse mistério eterno onde o passado e o devir se entrelaçam para formular uma realidade intransmissível que a arte e a sua verdade se aproximam. E à nossa realidade onírica – sonhamos até à fronteira do ininteligível traduzida pelo poder dos símbolos, pelo poder estruturante da memória. Por isso, o sentido da vida que passa é um mistério insondável, mas inventado e que as idades vão tentando decifrar encontrando diversas respostas, diversos significados. A arte e as formas do tempo dela, o trabalho da terra em acordo com as estações do ano, a sabedoria das perguntas que só a filosofia sugere, apaziguam a noção de destino e a certeza do fim. Diz o vulgo que apenas temos uma certeza na vida: a morte. E assim todos os dias são um dia perdido para a morte, disse o filósofo. Todavia, «faute de penser la mort, il ne nous reste, semble-t-il, que deux solutions : ou bien penser sur la mort, autour de la mort, à propos de la mort ; ou bien penser à autre chose qu’à la mort, et par exemple à la vie.»* Se a morte de si é o que temos de mais pensável, pois o seu devir é o impensável, o não-ser, a vida é o único espaço-tempo do mistério possível. Esse mistério é constituído pela incerteza, por um não-saber que a vontade faz transpor. Depois, há mistérios dentro do mistério – a fruição da música, das artes plásticas, da literatura, isto é, aquilo que atravessa o tempo, decifrado pela sucessão do acordo do homem com o seu tempo; a arte que continua a questionar-nos. Incapazes de decifrar a morte, resta-nos a evanescência dos mistérios inventados sobre a vida, como as cores esplendorosas do Outono.

* Vladimir Jankélévitch, La Mort, Paris, Flammarion, 1977, p. 41.

Rembrandt, Filósofo em meditação, 1632, Musée du Louvre

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