Pagar por isso, pagar para isso

Vivemos uma era de paradoxal invisibilidade real e efectiva do ser; já não se é no sentido de se ser uma existência absolutamente individual, mas que alguma coisa, ou algumas coisas, preencham o nosso lugar natural, o nosso livre-arbítrio e nos indiquem um caminho que não sabemos traçar nem construir. A prática política e a sociedade evoluem no sentido do cansaço da liberdade e, por acrescento e consequência, da verdade. Também a cultura se ressente desta situação instalada; desfez-se da sua dimensão elitista e liquefez-se para que tudo coubesse dentro do seu conceito. Quase todas as manifestações que hoje congreguem algum sentido, são ou podem ser culturais. É verdade que o tempo vence e traz consigo a mudança, isso é inevitável, mas a questão é esta: que mudança e que novas qualidades. Sempre houve a queixa de um passado dourado, de um presente mais ou menos decadente e de um futuro temeroso e sem esperança. Mas, essa situação, esse modo de nos localizarmos na História, significa, em primeiro lugar, uma consciência e, depois, uma acção. Ambas, a consciência e a acção estão determinadas, na sua origem, por um modelo geracional transmitido e por uma ideologia também. Trata-se de um processo de conhecimento das coisas que não se estanca no tempo nem na estrutura social. A mudança que atravessamos é, ao mesmo tempo, frágil e determinada na sua evolução futura – frágil porque os modelos se estilhaçaram e perderam a sua legitimidade histórica; determinada porque o futuro está desenhado no sentido de uma narração que questiona a verdade e a mentira, o que é verdadeiro e o que é falso. A informação disponível é imensa, mas informe e bruta; a representação das coisas não é suficiente, não no sentido da sua razão, mas da sua veracidade – o que é e o que não é confundem-se numa miríade de des-representações sem tempo plausível, imediatas e sem capacidade de “fazer” memória. Ora, sucede que a memória é uma questão de fixação de uma dada identidade. Estar “fora” de um determinado “tempo” começa hoje mais cedo, porque a sociedade se tornou mais volátil, mais circunstancial. Não pagamos por isso, pagamos para isso.

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