O Silêncio | Capítulo 5

Pelo meio da manhã, levantou-se um vento forte e gelado, cortante, e o céu mudou-se, repentino, em nuvens cinzentas e arroxeadas, prenúncio evidente de tempestade. A luz cortante de um relâmpago e grossas bátegas de chuva aconselharam o náufrago a procurar abrigo. Dirigiu-se de novo para a taberna. Não estugou o passo, indiferente à força do tempo que estava prestes a desabar sobre a aldeia com calculada violência. Viu que as mulheres iam saindo das suas casas e se dirigiam, a passo largo ou a correr, na direcção da casa para onde o físico levara a mulher atingida pelo silêncio. Essa casa era a última da aldeia e o muro de pedra terminava nela. Começaram a nascer luzeiros nas suas janelas térreas, e os vultos escuros que se moviam no interior, pareceram ao náufrago desprovidos de sentido. Algum segredo habitava aquela casa para que as mulheres lá se reunissem, pensou. E assim que isto pensou, as cortinas das janelas foram corridas e os vultos desvaneceram-se. Todavia, parado por momentos defronte da casa, na correnteza oposta, nada do que acontecia instigava no seu espírito qualquer forma de medo, qualquer dúvida relativa ao caminho que iniciava. Quando entrou na taberna, alumiada pelas duas velas do balcão e pelas que estavam em cima de algumas mesas, os homens fumavam em silêncio, como se esperassem que a tempestade os levasse a todos de uma única vez. As grossas nuvens espalharam a escuridão pela taberna. O náufrago mal lhes divisava os rostos. E pareceu-lhe que todos esperavam algo para além da passagem da tempestade e para além, sobretudo, do destino da mulher ferida pelo silêncio, que fora levada sem explicações. No quadro geral, todos esperavam e pareciam acabrunhados de respeito pelos relâmpagos e pelos fortes trovões. O náufrago considerou que, na sua condição de forasteiro não devia aproximar-se; aquele silêncio era a barreira de uma realidade de que apenas aqueles homens faziam parte. Em todas as pequenas mesas, a luz das velas revelava nacos de pão, carne salgada e canecas de estanho, certamente contendo vinho ou hidromel. Sentou-se no mesmo banco em que se sentara quando chegou, entre o balcão e a porta, e apoiou o braço sobre o balcão. Olhava, pela janela minúscula, a luz cegante dos relâmpagos que lhe permitia divisar, por um corte fulminante do tempo, o espaço da taberna, mas sobretudo a imagem dos outros homens, uma espécie de espectros que o céu em fúria revelava. O taberneiro colocou à sua beira uma caneca de vinho. O náufrago fixou o taberneiro nos olhos e começou a beber o vinho. O homem tinha um olhar vítreo e parecia olhar para além dele, para um infinito eterno que nele encontrara a sua forma. As mãos com que segurava a caneca tremiam-lhe, parecia tomado por uma qualquer força sobrenatural em que não pensou, apenas sentiu, como se fosse guiado por um instinto básico e animal. Quando saciou a sede, tinha a cabeça preenchida por um estranho nevoeiro e as pálpebras pesavam-lhe. Habituado, durante anos, ao rum dos navios, sabia que não podia estar embriagado por uma tão pequena parcela de vinho. Olhou para os outros homens, que esperavam, não pelo fim da tempestade, mas por não sabia ele o quê, e todos se lhe afiguraram assustadores como aparições de almas do outro Mundo, envoltas numa bruma. A tempestade serenou e o físico regressou à taberna. Um dos homens avançou da obscuridade e ambos disseram que os acompanhasse. Quando o náufrago se levantou, o taberneiro disse-lhe que era tempo, então, de começar a busca que o trouxera até à aldeia e que desarriscasse de si tudo o que até ali conhecera. E que um dia, no relance de um olhar, seria noite.

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