patologia do acaso, diário, 227

2022, Dezembro, 3 – A fronteira com o passado é uma vivência tão instável como as marés ou os dias de Outono, muda conforme as qualidades temporais do que pensamos e é, assim, uma realidade subjectiva que irrompe do curso do tempo e das idades ou a ele se adapta. A memória é uma forma de identidade e a sua temporalidade pressupõe hiatos de esquecimento, naturais ou impostos, mas, na mesma medida, hiatos de lembrança. E é verdade que, por outro lado, também decidimos o que queremos e o que não queremos recordar. A percepção que temos do passado não é linear, não tem sempre a mesma dimensão nem as mesmas qualidades e, por isso, a memória adquire feições diferentes de acordo com actos e pensamentos que se libertam do seu labirinto. Pode dizer-se, creio, que existe, no presente, uma cortina diáfana entre nós e o nosso passado e, sendo o presente uma categoria em permanente metamorfose, essa cortina deixa passar a luz da obscuridade do que somos, por iniciativa consciente ou porque a razão nos atraiçoa e nos expõe a momentos do pretérito sobre os quais pesam diversos sentimentos: alegria, formas de felicidade, remorso, culpa, arrependimento, angústia. Não conseguimos preservar-nos dos labirintos do passado e parece, muitas vezes, que esse passado irrompe no nosso espírito sem qualquer razão aparente; mas existe sempre uma razão, desconhecida ou entendida. A nossa relação com o passado é constante; as formas diferentes, mas tudo o que vivemos, seja por traição seja por estímulos exteriores, por vezes simultâneos, permanece vivo, ainda que a memória seja uma realidade selectiva. Vem este arrazoado a propósito de me ter decidido a reescrever o conteúdo dos meus diários anteriores, transcrevendo-lhes as partes mais interessantes ou relevantes segundo a ocasião a que se refere cada dia. Tentei o feito por três vezes e em todas abandonei o meu propósito – não porque existam equívocos assinaláveis entre mim e a vida, mas porque não quero recordar o que já passou e está nesses cadernos inscrito. O exercício resultou em que me senti oprimido por aquele passado distante. Interessa-me mais a minha relação presente com aquele passado, se a isso me dispuser. De modo que o projecto dos diários gráficos onde inscrevia algum do meu quotidiano não avança. É provável que se trate de um passado não resolvido inteiramente e que ainda suscita no meu espírito algum ressentimento. É provável. Mas se isto retiro do que foi escrito, o mesmo não acontece com os desenhos e pinturas desses volumes. Se as palavras podem remeter para um passado eventualmente não resolvido, a sua representação imaginária permanece incólume ao meu juízo. Os cadernos começaram a ser escritos há quase trinta anos; é muito tempo e nunca é muito tempo. A nossa fragilidade perante o tempo é demasiado complexa para que possa dizer-se que esse tempo se resolveu. E o presente, demasiado rápido, quase inexistente.

J.M., Labirinto arquitectónico, diários gráficos, 2002

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