patologia do acaso, diário, 188: o Teatro no meu destino

2021, Março, 27. Não somos, na nossa vida, fazedores de uma história única, nem tão-pouco, fiéis a uma única e imutável verdade, livres de contradições e de erros, livres de culpa e de remissão. Também a nossa vida não é uma história perfeita, pois ela equivale mais a fragmentos de histórias que se digladiam e concordam, que num dado momento conseguimos recordar e, mais tarde, nos apercebemos, por qualquer estímulo exterior ou interior, que uma ou mais parcelas dessa história se perderam num esquecimento momentâneo ou definitivo. E julgo ser verdade, ainda, que não somos detentores de um só passado, mas de incontáveis, uma vez que a nossa perspectiva sobre ele incide diferentemente. Nunca estaremos, enquanto seres pensantes, num lugar interior de onde nos contemplemos com demora e nos consideremos chegados a uma forma final, a uma conclusão que, necessariamente, tendamos a afirmar ser a representação última. Por muito distantes que estejamos do mundo, por muito sós que nos achemos, o movimento é uma parte inata da nossa natureza; pensar é movimentar-se. Concluímos objectivos a que nos propomos, superamos trabalhos que nos surgem ao caminho, mas o trabalho maior, que é a consciência-de-si, nunca o terminamos, nunca. Em termos epistemológicos, somos como a ciência e a sua história; à semelhança da prática científica, somos o triunfo por igual da verdade e do erro; à semelhança da história dessa ciência, nunca alcançamos de nós um conhecimento absoluto e imutável, uma vez que a escrita da história é em primeiro lugar uma construção de conceitos, e estes existem sob o império do tempo que passa e produz mudança. Num certo momento da vida olhamo-nos e construímos uma representação; em outro momento chegaremos a outra representação. E, no entanto, nenhuma destas representações se fixa no nosso espírito como uma pintura que contemplássemos vezes sem conta. Isso não é possível, nunca estamos no mesmo lugar, nunca aramos a mesma terra. Sendo únicos, não somos absolutos. A complexidade do ser passa pelo desejo e pela ambição de ser um outro. Somos diversos no único de sermos, apesar das idiossincrasias próprias. Se a capacidade fulgurante de ser um outro é complexa e é fonte de contradições ou de sofrimento, a verdade é que essa complexidade nos permitiu o exercício do Teatro.
Eu quis ser diverso do que sou, mas não de quem sou, ainda que seja tão assolado pela dúvida e pela angústia de construir certezas. O destino, seja isso o que for, proporcionou-me, algumas vezes a escolha de ser diverso do que era e ter tido uma vida diferente. O que importa pensar nesses caminhos que não foram abertos? Há muito tempo que já não penso nisso, pois estou num tempo e numa idade em que considero que, se não fui imune ao erro nem me dispenso de arrependimentos, quase tudo esteve certo. Gostava de ter sido arquitecto, mas era mau aluno a Matemática, quis ser jornalista, mas a disciplina, no ensino secundário, foi uma enorme decepção, ponderei a opção de seguir Artes, mas receei o caos e a loucura. Quanto à História, não tinha dúvidas nem receios; e assim me tornei historiador. Mas houve um fascínio que permaneceu: o do Teatro, e lembrei-me hoje disso porque que é o Dia Mundial do Teatro.

Há muitos anos, há tantos que apenas consigo recordar que seria uma criança de seis ou sete anos, talvez de oito anos, pois é possível que a minha família já se tivesse mudado da casa dos meus avós maternos, em Manique, para a casa nova, em Pau-Gordo, acompanhei uma tarde o meu pai, que foi pintor da construção civil, em um trabalho que ele então estava a executar na sede da colectividade de Bicesse. Torna-se necessário o preâmbulo do esclarecimento de que me refiro a um tempo em que a Televisão portuguesa, com dois canais e difusão de imagem a preto e branco, transmitia peças de Teatro protagonizadas pelos maiores actores da época ou mais antigos, ou programas de actualidades culturais onde o Teatro que se fazia tinha um lugar destacado. Enquanto o meu pai realizava o seu trabalho, deambulei pelo salão da colectividade e, a certo momento, cedendo a uma vontade enorme, subi, pelos breves degraus laterais, para o palco. Guardo ainda, perfeita, a imagem do salão vazio de cadeiras e do balcão superior. Devia ser Primavera ou Verão, porque a luz revelava todo o espaço. O meu pai não estava ali, mas em uma outra dependência da colectividade, embora eu ouvisse as vozes dos trabalhadores. Contemplei a plateia vazia durante longos momentos, suponho que a imaginei repleta de público e, num certo instante, declamei uma frase que memorizara de uma peça que vira na televisão, sei hoje, recordando a voz do actor, protagonizada por Rogério Paulo. Tinha uma voz distinta, impressionante, e aquele dito ficou-me gravado no espírito. É muito possível que tenha ouvido essa fala teatral – desconheço ainda a que peça pertenceria – em alguma transmissão do programa TV Palco, apresentado pelo locutor e actor Igrejas Caeiro, que ainda existia nessa altura, pois deve ter terminado por 1975. Então, na minha voz de criança, quiçá a imitar a voz do Rogério Paulo, disse a fala: «Nem ao menos os medicamentos que nos mandam da metrópole!» Depois da memória de ter “declamado” a frase não me lembro de mais nada, nem sei se disse mais frases. Recordo-me que o meu pai comentou o meu feito teatral com a minha mãe e eu senti uma vergonha imensa, mas o sentimento de a ter dito perante aquela plateia imaginada foi imenso, feliz mesmo. Não tinha idade suficiente para participar da noção espiritual de querer, no futuro, ser actor; senti apenas o fascínio do palco. Depois, dado que estudei muitos anos num colégio católico, os Salesianos do Estoril, participei em actividades da Igreja e, sempre que possível, “fazia” teatro. Mais tarde, talvez no começo do Verão de 1986 ou do de 1987, estava então a frequentar o curso de História, soube, não recordo como, da abertura de um concurso para vagas num curso de Teatro leccionado por uma Companhia de Teatro que ficava ali ao Largo de Santiago, na encosta do Castelo de Lisboa, financiado com dinheiros da C.E.E. Decidi-me a concorrer e aliciei para o mesmo objectivo a C., que anuiu, muito a contragosto. Lá fomos inscrever-nos, num dia claro e quente. Preenchemos uns papéis, não me lembro se fizemos algum tipo de prova. E a minha namorada sempre muito contrariada com aquilo, uma vez que não era dada a aventuras artísticas. Enquanto não chegaram os resultados da selecção dos candidatos à frequência do curso, vivi na excitação enorme da possibilidade de ser actor e, se tal efabulação se verificasse, estaria disposto a trocar a História pelo Teatro. O resultado da selecção, quando o soube, foi para mim o mais decepcionante e curioso que poderia ser: eu fui excluído e a minha namorada foi aceite. Ela desistiu imediatamente. Não vale a pena pensar muito nisto, a minha escolha pela História esteve sempre certa, embora em tempos terríveis a tenha questionado, já depois do curso e do mestrado em História da Arte. Também a arte me fascinava e me ofereceu o mesmo martírio de padecimentos existenciais, e assim o fado. Há muitos anos que não merece a pena pensar nisto, essas macerações estão pacificadas. Mas podia ter sido actor…


Relevo do poeta Menander (342-291 a.C.) sentado com máscaras da nova comédia, mármore, 48,5 x 59,5 cm., século I a.C. – início do século I d.C., Princeton University Art Museum

Traição (um fado)

A sombra dos pinheiros desenhada
pelo fogo original do ocaso na parede,
esmaeceu num movimento de sede,
num esgar frio de promessa cansada…

Nada. Sob o tempo palavra nenhuma
a que encontre um ténue significado…
E então, no meu rosto pelo sol revelado,
uma tristeza muda, só e azul, ressuma.

Não sei que flores em fim poderiam salvar
a nudez de sangue e silêncio que me assalta
Não sei que flores me traduzem a falta,
nem que alegria fingida me pode resgatar.

Naquele instante amarelo onde se anuncia
a treva; na sombra lenta, inútil, do poente,
há uma faca de ansiedade, o gume ardente
que sem rendição atraiçoa a noite e o dia.

Cartas R.V. Um ensaio

[nona carta]

Março, 20 a 22

A esta hora do dia, vencido o esplendor do ocaso, depois de a perspectiva das árvores ter desaparecido da parede poente da casa, a luz que do mistério persiste, arrefece, torna-se espectral, torna-se uma abstracção quase hostil e é em extremo contrastante no interior da casa onde escrevo; pertence já ao domínio da noite, fere, mas ainda não existe escuridão, apesar de as estantes e os livros começarem a ser tomados por uma sombra que se adensa com rapidez, decisiva e irredutível ao recuo, irredutível em relação a tudo o que dela brota, mas não ao tempo que sobre tudo impera e a tudo ordena. O exterior aquieta-se, no intervalo da chegada das aves nocturnas e do domínio do silêncio da noite. Hoje há vento, as ramagens dos pinheiros marulham; poderia dizer que ouço uma amálgama dos sons do mar e do vento puro. Este é o momento do dia em que a energia devotada ao trabalho se vai diluindo, lentamente, na melancolia, e as contradições criativas da depressão assomam ao meu espírito. Começo a entrar no obscuro significado profundo das coisas, numa forma de vazio onde apenas ocorre a essência. Posso dizer que tenho enraizado o desejo profundo e consciente de dedicar a metade da vida, que ainda possa ter, ao estudo, apesar dos sacrifícios material que tal escolha possa significar, e a solidão quase absoluta – é absoluta em mim – que tal estado acarreta, não suscita qualquer hesitação quanto a este meu propósito, ainda que não seja indiferente a essas dificuldades, pois, como escreveu Cícero, a indigência não fica bem à tranquilidade de uma velhice desprovida de ressentimentos. Acolho em toda a sua inteireza a solidão do meu estado, pois a procurei, não pela fuga, mas por uma ânsia de liberdade e de pacificação. O meu afastamento do mundo é agora uma realidade estabelecida. Compreenda que não tenho a pretensão de me tornar em um filósofo, pois carece-me o tempo da metade anterior da vida para tal ambição. De mim, como você sabe, só posso afirmar que sou historiador. É evidente que você conhece muito melhor do que eu as razões desta atitude clara ao meu espírito – saberia expô-las e explicá-las. De alguma forma, confesso, o poder fechado da sua explicação tranquiliza-me ou, melhor, consola-me, dado que receio a loucura e a queda das explicações. Tenho em si a única pessoa que pode explicar-me. Há quarenta anos, não segui a vocação das artes, que era em mim tão evidente, devido ao receio que tinha de vir a enlouquecer numa realidade que eu antevia como um caos. Não é a verdade inteira, mas é uma parte substancial. Também é evidente por demais que eu não poderia seguir outro caminho, uma vez que é nesta escolha deliberada, como digo, que eu consigo viver em liberdade. É possível que me engane quanto à natureza mais obscura do meu propósito, mas a verdade, suponho, é que cumprimos uma vida repleta de momentos em que cedemos ao engano para nos salvarmos e adiamos a guerra; ou precisamos, cada um para si, do engano e da mentira para sobrevivermos. Todavia, do que vislumbro quanto ao meu propósito, não vejo nele engano, subterfúgio ou simulacro, mas é muito provável que seja a minha única resposta ao desencanto, à desilusão e à descoincidência com a realidade. Em todo o caso, sinto tratar-se de uma decisão natural, isto é, de uma decisão que não me fere nem me suscita esse sentimento ignóbil e falsamente moralizante do ressentimento. A decisão relativa ao meu propósito não foi pensada de modo isolado, não corresponde à vontade de um dia ou de uma semana, ao capricho de uma vingança; foi construída sem que eu soubesse estar a construí-la, até ao momento de lhe retirar os andaimes. Não tendo ilusões nem expectativas, espero as provações materiais e psíquicas do meu desejo profundo. Eu estava longe, como Pascal da aldeia, na paisagem – «Une ville, une campagne, de loin c’est une ville et une campagne, mais à mesure qu’on s’approche, ce sont des maisons, des arbres, des tuiles, des feuilles, des herbes, des fourmis, des jambes de fourmis, à l’infini. Tout cela s’enveloppe sous le nom de campagne.» Agora, que estou na ombreira da velhice e tudo se aproxima, todos os significados são um excesso de percepção, toda a visibilidade, toda a linguagem se tornaram mais vívidas do que antes – pela primeira vez, por desejar descer ao silêncio de mim, pois toda a verdade, ao invés do que se julga, é uma escada que se desce, encontro-me perante o infinito; alcancei todo o desinteresse material e, até, quase toda a indiferença aos acontecimentos do mundo; basta-me saber o essencial e já só o essencial é um peso que evito por todos os meios. Você sabe como eu abomino as lamentações e os ressentimentos e, por isso, não entrarei na velhice tocado por esses males; não tenho queixumes da vida e penso com Cícero, no seu pequeno tratado sobre a velhice: «De muitos conheci uma velhice que desconheceu as lamentações; esses não só se desvincularam sem dificuldade dos prazeres como também nunca foram desprezados pelos seus. Mas a razão de todas essas recriminações reside na maneira como se vive, e não na própria idade […].» Neste meu propósito de vida, alterei hábitos para que a reflexão e o trabalho preencham adequadamente o dia. Falei-lhe da noite na carta anterior – evito-a na vivência informe que antes tinha, assim como tudo o que, não sendo premente e se justifique, perturbe o meu pensamento. Posso traçar uma ou outra ideia à noite, mas escrevo durante a manhã. O dia está hoje magnífico. A minha única filosofia é encontrar o esplendor da vida nas coisas mais comuns, como as ervas e as flores selvagens que há pouco fotografei, o silêncio, as palavras, o pensamento puro, a Natureza, pois é lá que se encontra a origem de toda a complexidade. Se não sabemos pensar o comum, não teremos acesso ao complexo.

Receba, como sempre, a minha gratidão
e creia-me,
R.V.

Esboço (um fado)

Ferem-me os ombros aves nocturnas
e descarnam-mos para seu alimento:
são o silêncio das árvores soturnas
a mudarem-me os dias num acrescento.

Fere-me o peito a lança de uma batalha
tão antiga que desceu um véu cinzento
sobre a memória… e quase tudo falha
em valer a pena um esboço de movimento

Ferem-me as mãos os duros espinhos
de cardos em vermelho decomposto:
e o sangue de gestos vãos e sozinhos
arde mais que um ocaso de Agosto.

Quase nada, porém, nem sinal de ferida…
Apenas um imóvel, inato sofrimento…
Então regressam as aves na medida
de valer a pena um esboço de movimento.

patologia do acaso, diário, 187

2021, Março, 17. Primeiro os trabalhos da terra e depois o trabalho do espírito, pois é a terra que abre o caminho para o espírito no sentido de um movimento predisposto para o pensamento. Por outro lado, é possível ocupar o pensamento durante a realização dos trabalhos da terra, mesmo quando, ilusoriamente, em nada se pensa. A primeira tarefa prepara-me para a segunda, uma vez que me desocupa o pensamento de toda a ansiedade que sempre acompanha a retoma diária do trabalho do espírito. E, assim, consigo recomeçar o trabalho que me ocupa o pensamento e torna útil o tempo que me está destinado, sem temer nem a sua vastidão, nem o receio quanto à força para o realizar.

JM, 17 de Março de 2021

as memórias obscuras / 1

Le soleil ni la mort se peuvent regarder fixement.
François de La Rochefoucauld (1613-1680)

Nada tem o ser humano de mais pensável e absoluto do que a morte; porque a um tempo a sabe, como a imagem positiva de uma revelação fotográfica, como um espelho por via do outro; e como a imagem negativa de a não saber por inteiro. O positivo e o negativo da morte são absolutos. E tanto é a morte o que de mais pensável tem o ser humano, quanto esse ínfimo momento desconhecido e marcante da fronteira entre o ser e o não-ser em suma justifica todo um processo de conhecimento a quem esteja disponível para o percorrer. Só nós, os mais sós de todos os seres à face da Terra, sabemos que vamos morrer e que dispomos de um tempo para sermos alguma coisa e, nesse ser-se alguma coisa, conseguir a sombra de algum poder sobre a morte. Despertamos todos os dias para o absoluto; todos os dias representam a medida de um complexo absoluto – abandonamos a obscuridade, mas movimentamo-nos no seu sentido; resta-nos, pois, a potência do presente, esse lugar da confluência do que foi, do que é, e da expectativa. Estamos no centro-nada, suspenso, de uma tempestade que de uma maneira se manifesta dentro de nós e, de outra maneira, nos é exterior. Não é pois possível pensar a morte sem que se pense a vida. O absoluto está no centro das tempestades, mas não podemos aí permanecer sem tempo, dado que nos arriscamos a olhar fixamente o sol e a morte. O centro dessas tempestades acontece em nós por variadas razões e uma dessas razões diz respeito à memória que estrutura a nossa identidade. Uma parte substancial dessa memória subsiste na obscuridade, a não ser que tenhamos salvado testemunhos do passado ou nos tenhamos vingado escrevendo, tomando notas. Os objectos que salvámos do ser que fomos são um acto da consciência que temos da morte; um acto de uma vasta narrativa que dificilmente poder ser reconstituída em todos os seus pormenores. É um acto obscuro cuja origem advém de nós ou de outros – guardamos objectos da infância porque alguém antes de nós os guardou, intencional ou casualmente; ou ainda, simplesmente porque, esquecidos, atravessaram o tempo. Uma dada narrativa repousa nesses objectos.

O que eu adorava esta camisola com o sol estampado. Eu era o corpo daquele sol cuja face amarela me acrescentava alegria e força. Talvez o acaso a tenha preservado até ao momento em que decidi, eu, guardá-la. A minha memória desta camisola é muito vaga, na verdade, recordo apenas um dia em que a tinha vestida, na escola, e corria, com outros miúdos. Era o Sol, o Sol resumia o meu fascínio, com as suas chamas circundando um rosto firme e decidido, de olhos abertos à vida. Eu era o corpo e o movimento deste Sol e ele a minha defesa da melancolia. Eu tinha o Sol à altura do meu peito. Era a minha camisola preferida e não consigo recordar outra. O Sol da camisola era eu, e o seu rosto esboçava um leve sorriso silencioso e imóvel que me protegia e me espelhava, pois eu não o tinha. Ao princípio, isto é, no tempo desta camisola, eu não compreendia a tristeza que me habitava, ainda não a tinha nomeado, eu era um ser assim, desasado e só, resumido ao meu nome, mas sem nome dentro de mim. Então, o Sol desta camisola fazia-me existir contra o mundo violento da culpa, do pecado, do Céu e do Inferno que me eram ensinados. Nunca esqueci a imagem que, no catecismo católico, ilustrava o pecado mortal: uma árvore cinzenta e seca. Todavia, mais do que o medo do Inferno como destino dos condenados pelo pecado mortal, o que eu sentia era uma opressão sufocante. Aquela árvore. Havia Cristos crucificados e ensanguentados por todos os lugares do colégio e eu não compreendia a submissão que me impunham a um sacrifício por pecados que não eram meus. Não compreendia que o Mundo fosse um pecado, nem me era entendível que Cristo tivesse morrido por mim. A minha primeira dúvida é do tempo desta camisola com o Sol: onde ficavam todas as pessoas que tinham vivido antes de Cristo aparecer? Como podiam essas pessoas ser salvas se estavam antes da história? E concluía, então, que Deus fora injusto por não ter enviado Cristo quando criou o homem e a mulher. Lembro-me de ter feito a pergunta a um padre, no recreio do intervalo do almoço, mas o padre não me respondeu. O Sol desta camisola era a minha defesa e a minha resposta.

patologia do acaso, diário, 186

2021, Março, 9. «Escravos errantes da vida / Viva angústia de viver / Somos a imagem esbatida / Do que nós quisemos ser.»* Marte, não o deus romano, mas o planeta. Aqui, um dia há semanas, pelo final da tarde, o sol incidiu na parede da casa e projectou, de forma abstracta, a sombra das árvores. Marte – se é sem grande dificuldade que se imagina, tendo em conta o estado do Mundo, o que move o ser humano a querer fixar-se naquele planeta, é com acentuada melancolia que me pergunto: para quê? A pergunta, porém, logo se me revela inútil e desprovida de sentido, uma vez que se talvez ainda possamos assistir à ida dos primeiros humanos, não sabemos, pelo menos os comuns, em que Terra se viverá quando essa presença em Marte for uma realidade corrente. A ida do homem a Marte e a possibilidade da sua permanência no planeta vermelho é hoje um objectivo adquirido depois de os robôs Curiosity, em 2012, Insight, em 2018 e agora o mais sofisticado Perseverance lá terem chegado. No dia 19 de Fevereiro, logo que o Perseverance pousou no solo de Marte e enviou a primeira imagem, na conta Twitter oficial desta missão, escreveu-se: “Olá mundo. O meu primeiro olhar para a minha casa eterna.” O robô e as palavras do robô somos nós, os humanos, prestes a avançar pelo Universo e, num tempo muito distante daqui, prontos a substituir a importância filosófica do conhecimento pela glória de uma conquista que não terá historiadores. E todavia pergunto-me, para què? Bem sei que a pergunta deriva da minha ignorância estritamente científica no que ao assunto diz respeito, mas a questão que coloco é fundamentalmente filosófica. O homem já foi, num “pequeno passo para o homem, [n]um grande passo para a Humanidade”, à Lua. Passados mais de cinquenta anos sobre essa epopeia científica e ideológica – estava-se em plena Guerra Fria – a dúvida permanece-me a mesma: para quê? Em termos de desafios que a Ciência a si mesma se impôs, quer a Lua, quer, agora, Marte, são, incontestavelmente, vitórias do conhecimento e do engenho humanos. Sabe-se que estas missões contribuem, também, com assinaláveis resultados, para o estudo do corpo e da mente humanas. «Para nada», não responde, naturalmente, à pergunta. Saber-se-á, no futuro, se o homem fará aos planetas que conquistar o que fez ao planeta onde habita, pois não é certo, pela repetição do método que os resultados sejam diferentes, porque o não podem ser. As vitórias alcançadas pela ciência neste domínio não correspondem, necessariamente, ao rigor e à ética que enformam, em termos gerais, o caminho que a caracteriza, não é difícil adivinhá-lo. Se é já difícil termos uma noção exacta e, portanto, sabermos em que tipo de mundo vivemos neste momento, o futuro é um exercício da imaginação. Não deixa, por isso, de ser um exercício que apresenta generosas dificuldades conceptuais. Ora, a verdade é que, nesses termos, históricos e filosóficos, o futuro não se apresenta generoso ou esperançoso. A importância da História e da Filosofia na vida comum das pessoas, decai e essa realidade constitui uma fraqueza relativamente a perigos que a maioria nem antevê, mas cujos sinais, alguns, estão bem à vista. Para quê Marte, se nos condenamos na Terra?

* Poema de Álvaro Duarte Simões, do fado «Algemas», de Amália Rodrigues.

Imagens: provenientes de John Keill [1671-1721], Introductiones ad veram physicam et veram astronomiam. Quibus accedunt trigonometria. De viribus centralibus de legibus attractionis, , Lugduni Batavorum, Apud Joh. Et Heram. Verbeek. Bibliop., MDCCXXV [1725], pp. 296-297.

O Padrão dos Descobrimentos: explicá-lo em lugar de o demolir

Arquivo Histórico Maceira Liz

Tudo o que sou agora não fui ontem nem amanhã serei; todavia, persiste o mesmo de mim, dado que reconheço um passado que é o meu e com o qual me identifico; dado que esse passado é a minha identidade que desemboca no agora e em potência, agora pensada, persistirá dentro dos limites físicos da vida humana. É-me possível, assim, uma vez que me entendo e me questiono, sem, no entanto, deslocalizar de uns dados tempo e espaço a minha identidade de ser, pois que tal é uma impossibilidade, colocar-me fora de mim, observar-me, num exercício de metafísica do tempo, num exercício, para todos os efeitos, de movimento, também ele metafísico. A totalidade do ser não é pura, não é imutável nem é estática – todas as qualidades de quem sou movimentam-se em acordo com a volubilidade do sentimento e do pensamento e dos confrontos entre um e outro. É possível contemplar a mesma árvore sob perspectivas diferentes e mesmo antagónicas; porém, não me é possível alterar as qualidades naturais dessa mesma árvore. Reconhecer a diversidade das perspectivas emocionais que possa ter relativamente a tal árvore é um processo ontológico e epistemológico. Estou sempre num dado presente que construo e desconstruo conforme o meu movimento metafísico e essa ocorrência pressupõe, inevitavelmente, uma relação com o passado, uma vez que, pensando agora, penso ainda fundamentado sobre o processo de sedimentação de todo o meu passado, de toda a minha memória. A memória, ainda que mitificada ou idealizada, é a minha identidade, sempre observada a partir das qualidades do presente. Quero dizer que não posso alterar a memória de factos ou sentimentos que se consumaram de uma determinada maneira, mas posso revê-los, reajustá-los mais e mais à verdade do que foram e às consequências que produziram. Os testemunhos materiais dessa longa memória reavivam-na com maior justeza e podem, assim, apurar a percepção do meu passado e o juízo que dele faço. Por outro lado, esse passado, não se repetindo, e formando-se por um processo de sedimentação, não regressa, mas, constituindo a minha identidade, pode e está na origem de comportamentos semelhantes que derivam da minha idiossincrasia. Padrões de actuação, de reacção, de relação, de pensamento, todo um mundo psíquico em movimento, com resultados identificáveis e pensáveis a todo o momento. Esse mundo psíquico produziu realizações no tempo e no espaço; essas realizações constituem-se como testemunho, como documento de um passado que ocorreu de uma determinada maneira e não de outra. Posso, evidentemente, afirmar que esqueci dados momentos do passado, mas sabemos que tal afirmação não é inteiramente verdadeira. Por outro lado, o processo construtivo da memória é selectivo, e essa selecção, sempre simbólica, produz um discurso e é significativa; não posso nem devo ignorá-la, uma vez que estrutura o referido discurso e os respectivos significados. O presente, o agora, questiona o passado, mas não pode dizer que não aconteceu o que aconteceu, nem que um dado testemunho é aquilo que não é, ou seja, é aquilo a que não corresponde. Mas é também verdade que se verifica a necessidade do mito e que certos acontecimentos passados vão adquirindo uma dimensão e qualidades que não atribuímos a outros, contemporâneos nesse passado, ou não; momentos marcantes de um percurso, rupturas, continuidades reconfortantes, decisões fundamentais – o mito é uma estrutura de sentido, portanto, uma estrutura que confere relevo a certas qualidades da existência de uma pessoa, de um grupo, de um país; a certas qualidades de uma dada identidade. Depois, o que fica dessa memória, em terminando uma vida, um regime, um exercício de poder, já não lhes pertence, é “apenas” o que fica do que passou. Mas o que fica desse trânsito possui uma verdade, sendo assim a maior qualidade do historiador a justeza fundamentada do seu juízo na aproximação a essa verdade. A relação dos Portugueses com o seu passado recente não está resolvida no que diz respeito aos seus acontecimentos fundamentais e, por conseguinte, no que concerne às suas consequências.

Arquivo Municipal de Lisboa

Daqui por três anos vencem os 50 anos do golpe militar de 25 de Abril de 1974 e da Revolução que se lhe seguiu. O que a escrita da História pacifica por maior ou menor tempo, não corresponde, necessariamente, à pacificação individual ou colectiva relativamente à interpretação dos factos e dos contextos. A história recente de Portugal ainda está viva. António de Oliveira Salazar, figura tutelar do século XX português, vive ainda, nas funcionalidades do mito, da idealização e do confronto com um presente político considerado decepcionante. O mito do governante desinteressado dos bens materiais, consagrado ao serviço da Pátria por um imperativo de consciência e, sobretudo, o prestígio da austeridade do seu viver pessoal e político, perduram ainda enquanto ideal do homem público acima dos interesses clientelares dos partidos. E assim Salazar se definiu a si mesmo, em discurso proferido a 7 de Janeiro de 1949, no Porto, no Palácio da Bolsa, durante a Conferência da União Nacional, tendo em vista as eleições presidenciais de 13 de Fevereiro desse ano, de que sairia vencedor, contra Norton de Matos, o marechal Carmona: «Devo à Providência a graça de ser pobre: sem bens que valham, por muito pouco estou preso à roda da fortuna, nem falta me fizeram nunca lugares rendosos, riquezas, ostentações. E para ganhar, na modéstia a que me habituei e em que posso viver, o pão de cada dia não tenho de enredar-me na trama dos negócios ou em comprometedoras solidariedades. Sou um homem independente. Nunca tive os olhos postos em clientelas políticas nem procurei formar partido que me apoiasse mas em paga do seu apoio me definisse a orientação e os limites da acção governativa. Nunca lisonjeei os homens ou as massas, diante de quem tantos se curvam no Mundo de hoje, em subserviências que são uma hipocrisia ou uma abjecção. Se lhes defendo tenazmente os interesses, se me ocupo das reivindicações dos humildes, é pelo mérito próprio e imposição da minha consciência de governante, não por ligações partidárias ou compromissos eleitorais que me estorvem. Sou, tanto quanto se pode ser, um homem livre.» Esta ideia persiste e não necessariamente apenas entre os admiradores do estadista e do seu legado. O regime que instaurou, o império ultramarino e a sua simbólica, a guerra colonial, o golpe militar de 25 de Abril de 1974, o processo revolucionário, a descolonização e os “retornados” continuam a ser fonte de acesa polémica, nos mais dos casos, enquadrada por um claro desconhecimento ou insuficiente saber da história do tempo daqueles acontecimentos. Esta polémica trava-se também nas redes sociais, mas em termos simplistas e derivando, em suma, sobretudo dos legados do mito e da desilusão que impende sobre o presente e, ainda, da actual natureza do exercício do Poder.

O fim do Estado Novo, o regime em vigor no dia 24 de Abril, era uma questão de tempo. Sobre a “situação”, apesar da Primavera marcelista que acabou não o sendo, pesava um anacronismo mais ou menos sentido por toda a gente, que no seu quotidiano se deparava com a vigilância cerrada de uma polícia política e com a censura sobre os meios de comunicação; um anacronismo referente à natureza do próprio Estado, cuja resolução premente dos problemas que o tempo impunha, inevitavelmente colocaria em causa a sua continuidade segundo os mesmos moldes ideológicos. A necessidade evidente de democratização, a dissolução da polícia política, o fim da guerra colonial (que o regime não reconhecia como uma guerra propriamente dita, mas como uma resistência a movimentos terroristas), constituíam problemas sem resolução à vista, pois essa resolução pressuporia o fim do regime. E havia, ainda, a necessidade urgente de progresso social e desenvolvimento material para além da realidade urbana macrocéfala que caracterizava o País.

Mas Marcello Caetano não era um democrata, não poderia vir a sê-lo, mesmo que a contragosto. O regime, devido às suas características e à personalidade do seu Presidente do Conselho, não tinha nem poderia vir a ter uma saída que, por exemplo, pudesse contemplar uma “transição”. E o ultramar português continuaria inegociável. Nos seus valores simbólicos e materiais, que se confundiam com a própria natureza do ser português na história, o ultramar constituía uma obra civilizadora de que o regime jamais abriria mão, como disse Marcello Caetano no último discurso que efectuou na Televisão portuguesa, a 28 de Março de 1974: «O que defendemos em África são os Portugueses de qualquer raça ou de qualquer cor que confiam na bandeira portuguesa. É o princípio de que os continentes não são reservados a raças, mas que neles deve ser possível, para aproveitar os espaços vazios e valorizar as riquezas inertes, o estabelecimento de sociedades multirraciais. […] Manter o carácter português que há-de moldar o futuro das nossas províncias ultramarinas, conferir segurança a quantos, sob a égide de Portugal vivem em África e contribuem para nela se radicar a civilização e a cultura que representamos, eis uma causa que justifica os sacrifícios económicos e o tributo de sangue da Nação. Os soldados que em África se batem, defendem valores indestrutíveis e uma causa justa. Disso se devem orgulhar, por isso os devemos honrar.» E, referindo-se à calorosa recepção que teve aquando da sua visita ao ultramar, Marcello Caetano terminou seu discurso enunciando a condição irrevogável da presença portuguesa em África: «Julgam que posso abandonar esta gente que tão eloquentemente mostrou ser portuguesa e querer continuar a sê-lo? Não. Enquanto ocupar este lugar, não deixarei de os ter presentes, aos portugueses do ultramar, no pensamento e no coração. Procuremos as fórmulas justas e possíveis para a evolução das províncias ultramarinas de acordo com os progressos que façam e as circunstâncias do mundo. Mas, com uma só condição: a de que a África portuguesa continue a ter a alma portuguesa e que nela prossiga a vida e a obra de quantos se honram e orgulham de Portugueses ser.»

Bernardino Gomes e Tiago Moreira de Sá escrevem, no início do seu livro Carlucci vs Kissinger. Os EUA e a Revolução Portuguesa (Lisboa, Dom Quixote, 2008): «A 23 de Abril de 1974, o diplomata norte-americano Bob Bentley, que serviu na embaixada em Portugal entre 1967 e 1971, passou por Lisboa no regresso de uma missão e almoçou no Grémio Literário com um colaborador próximo de Marcello Caetano. Este estava muito pessimista. O Presidente do Conselho não aguentava, tinha de demitir-se nas próximas 24 a 48 horas porque havia um movimento militar que estava a crescer e, por outro lado, o Presidente da República pretendia formar um novo governo. Caetano tinha falhado em todas as políticas, desde a liberalização económica, passando pela abertura democrática, até à descolonização, e o sistema estava no fim.»

Com o precedente do golpe das Caldas da Rainha de 16 de Março desse ano, pelo Regimento de Infantaria 5 – que Marcello Caetano considerou, doze dias depois, na Televisão, como a oferta, de bandeja, a «todos os estrangeiros desejosos de nos ver despojados do ultramar português» de um possível e necessário «colapso da retaguarda em Portugal», tendo-se visto tal anseio «no entusiasmo com que os meios de informação de tantos países seguiram e avolumaram o triste episódio militar que a irreflexão e talvez a ingenuidade de alguns oficiais lamentavelmente produziu há poucos dias nas Caldas» –  pressentia-se a iminência de um novo golpe que conseguisse derrubar o regime. Esse golpe aconteceu e foi saudado pela maior parte das pessoas.

Ninguém que tenha consciência do estado material e moral do País nos últimos anos do Estado Novo; da ideologia vigente que reservava o exercício e a discussão da política a uma elite; das limitações à liberdade de expressão e ao exercício da cidadania, pode colocar em causa, apesar de todos os defeitos que possa encontrar na prática política, pode colocar em causa o que a Democracia de Abril tem feito pelo desenvolvimento em questões de direitos fundamentais, de infraestruturas, de acesso à educação, de condições gerais de vida. Tivemos 48 anos de ditadura e de Estado corporativo, temos 46 anos de democracia. Todavia, a nossa relação com esse passado comum recente não é pacífica e não está resolvida, desde logo porque nos diz respeito na carne: os nossos pais ou avós viveram durante a vigência do Estado Novo e sob a figura fundadora de Salazar, foram testemunhas de pequenas grandezas e de misérias, tiveram uma vida portuguesa, pequeno-burguesa ou rural, lutaram na guerra colonial, tinham a instrução básica, aprenderam que todo o tipo de poder era inquestionável, a autoridade não era discutível. No entanto, o povo nunca se levantaria, em termos revolucionários, de luta aberta, contra o regime; os Portugueses têm uma concepção paternalista do Poder, preferem “pagar” pela ordem a não saberem onde reside o Poder. Na história portuguesa existem dois levantamentos populares consistentes contra o Poder: no Outono de 1383, contra a legitimidade castelhana depois da morte do rei D. Fernando I e na Primavera de 1846 contra o governo de Costa Cabral, a revolta da Maria da Fonte. Todas as demais altercações da ordem vigente foram enquadradas pela aristocracia ou pelos militares e o 25 de Abril de 1974 não foi excepção. Estamos ainda demasiado próximos daquilo que não soubemos fazer perante as circunstâncias.

Dois dias depois do seu último discurso ao País pela Televisão, Marcello Caetano foi assistir, sem ser esperado, a um jogo de futebol entre o Sporting e o Benfica no Estádio da Luz. Foi ovacionado por cerca de 80.000 pessoas e saiu do Estádio, quinze minutos antes do final do jogo, convencido de «um sossego geral e apoio ao regime», como testemunhou no livro Depoimento, que publicou no seu exílio no Brasil, ainda em 1974. O Povo, que Salazar poupara aos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial, uma das glórias ideológicas do Estado Novo, estava com o regime. Mas um estádio de futebol não é um País. A realidade era diferente da euforia que o saudou: as taxas de analfabetismo, de mortalidade infantil e pós-parto, de emigração, de acesso ao ensino superior, marcavam duramente o anacronismo do regime ainda marcado pela figura tutelar de Salazar. Não sendo, por índole e por história de vida, um democrata, e estando condicionado pela ala dura do regime, Marcello Caetano não poderia ser o protagonista da uma “transição” que a todo o custo esse regime coarctava e essa foi a sua tragédia.

Esperava-se um golpe contra o Governo, restava saber de onde ele viria; se dos ultras da “situação”, se dos seus oponentes. Depois do golpe militar, a revolução desenvolveu-se no sentido da radicalização. A gravidade dos problemas por resolver e as ideologias políticas em confronto não dariam origem senão a radicalismos, os quais, por muitas voltas que se dê, a sociedade portuguesa ainda não sanou de uma forma mais ou menos acabada na sua consciência colectiva.

De facto, a verdade é que os Portugueses lidam mal com o seu passado comum desde o século XIX; tendem a idealizá-lo por contraste com um presente que não corresponde às suas expectativas; tendem a lamentar um império que só existiu na sua imaginação trespassada de ideologia; tendem a ajustar contas pontuais com aspectos e imagens desse passado. Com efeito, Antero de Quental continua certo nas suas Causas da decadência dos povos peninsulares, conferência pronunciada, na noite de 27 de Maio de 1871, no Casino Lisbonense: «A decadência dos povos da Península nos três últimos séculos é um dos factos mais incontestáveis, mais evidentes da nossa história: pode até dizer-se que essa decadência, seguindo-se quase sem transição a um período de força gloriosa e de rica originalidade, é o único grande facto evidente e incontestável que nessa história aparece aos olhos do historiador filósofo. […] Há em nós todos uma voz íntima que protesta em favor do passado, quando alguém o ataca: a razão pode condená-lo: o coração tenta ainda absolvê-lo. É que nada há no homem mais delicado, mais melindroso do que as ilusões: e são as nossas ilusões o que a razão crítica, discutindo o passado, ofende sobretudo em nós.» Um século mais tarde, Eduardo Lourenço qualificou esta ofensa advinda do culto da ilusão como um irrealismo, na medida em que «se a História, no sentido restrito de “conhecimento do historiável”, é o horizonte próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de si mesmos. […] Em lugar da autognose de uma realidade movente mas perfeitamente definida à qual nos referimos com o nome “Portugal”, nós historiamos um ser perdido de antemão e que milagre algum de dialéctica poderá reencontrar ao fim de uma análise que começou sem ele.» A ofensa clamada por Antero e o irrealismo identificado por Eduardo Lourenço mudaram-se hoje em uma identidade trágico-cómica incapaz de reconhecer uma e outra.

Exposição do Mundo Português, 1940: o Padrão dos Descobrimentos e a nau “Portugal”. Arquivo Municipal de Lisboa.

Um ícone desse passado transfigurado num irrealismo envolto em glória está agora em questão: o Padrão dos Descobrimentos, imagem inequívoca da ideologia do Estado Novo e da sua encenação da História. Foi construído em materiais efémeros para a Exposição do Mundo Português em 1940 e no mesmo local reerguido na eternidade da pedra em 1960, por ocasião do V Centenário da morte do infante D. Henrique, o navegador. São os seus autores o arquitecto Cottinelli Telmo e o escultor Leopoldo de Almeida. Mas o Padrão dos Descobrimentos deve ser entendido em simultâneo com uma outra dessas realizações artísticas dos regimes totalitários que conferem à história colectiva e aos seus heróis uma forma e um rosto; um discurso estético que define as qualidades com que a Nação se inscreve na História, ou seja, uma narratividade estética que constitua uma teoria da verdade e seja a verdade de uma teoria; a materialização de uma ideologia e do que existe em si enquanto representação: o projecto vencedor do concurso para o monumento ao infante D. Henrique, em 1935, a erigir no promontório de Sagres, consagrando o Navegador como uma figura fundadora da grandeza de Portugal, da sua época de ouro. Esse projecto foi apresentado pelos irmãos arquitectos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade com escultura de Rui Roque Gameiro e nomeado «Dilatando a Fé e o Império». O monumento, que elevava, numa estrutura monumental e arrojada, uma gigantesca Cruz de Cristo, plasmava, com efeito, uma fortíssima linguagem arquitectónica e escultórica destinada a, inequivocamente, fazer crer, a fazer acreditar, sem tergiversações, na grandeza dos Descobrimentos e Conquistas como uma epopeia da vontade da alma portuguesa e da fé católica; feitos de que o Estado Novo se considerava herdeiro na pessoa de um outro fundador, este, contemporâneo: Salazar. E foi o que disseram os jornais, nos primeiros dias de Maio de 1935, por ocasião da inauguração da exposição que divulgava todos as propostas apresentadas a concurso:

“Dilatando a Fé e o Império”, projecto vencedor do concurso para o Monumento ao Infante D. Henrique, no promontório de Sagres, 1935. Arquitectos Carlos e Guilherme Rebelo de Andrade, escultor Rui Roque Gameiro. Fotografia: Estúdio Mário Novais.

Logo a 30 de Abril, o Diário de Lisboa: «O século XV e o XX dão-se as mãos e as descobertas do passado completam-se com as conquistas do presente. […] O sr. dr. Oliveira Salazar, que é exemplar raro de português, a descobrir países novos dentro do próprio país, restabelecendo o Infante no comando da sua nau, consagra a Nação à figura que a encarna na sua gloriosa perpetuidade. […] É um trabalho grandioso, forte, dum admirável expressionismo arquitectónico. Um pilone com a inclinação de cerca de quarenta e cinco graus, fazendo ângulo com o oceano, ergue-se numa oblíqua formidável, que medirá mais de cento e vinte metros. Remata-o uma Cruz de Cristo que será iluminada. […] «Adivinha-se que os artistas, limitando-se quanto possível à geometria das formas, conseguiram sugerir numa concepção magistral, a fé e o império, isto é, o céu e a terra, unidos pela simbólica Cruz de Cristo. Esta interpretação é evidente e prolonga-se, espiritualmente, em quem vê o monumento.»

Se a monumentalidade da estrutura arquitectónica esmagava a passageira escala humana, destinado como estava, tal gigantesco padrão, a atravessar os tempos e a permanecer acima das suas vicissitudes e volatilidades, a escultura de Rui Roque Gameiro agigantava uma clara inspiração nos Painéis de São de Vicente de Fora, do pintor quatrocentista Nuno Gonçalves, os quais retratavam a ordem de uma sociedade. E a ordem carece de ícones que a situem em reação ao passado, que a imponham no presente e sejam o crédito futuro de uma grandeza alcançada. Neste contexto, tudo é símbolo e narração, como se escrevia no Diário de Notícias a 1 de Maio: «O monumento aprovado, além de ser uma notável peça arquitectónica, é, também, arrojadíssima obra de engenharia, que, a executar-se, ficará sendo a mais curiosa da Europa. A concepção é feliz. A inclinação para o sul tem sentido histórico e vinca um traço do carácter étnico – o impulso consciente e ao mesmo tempo aventureiro que nos atirou para o Mar dos Descobrimentos. A simplicidade impressionante das linhas e a enormidade da massa do monumento condizem, admiravelmente, com a rudeza e grandeza do meio onde vai ser erigido. Nos pormenores, aliás gigantescos, o trabalho impõe-se, também, pela obra primorosa de Rui Gameiro, cujos altos relevos são admiráveis de técnica, de expressão e de carácter.»

O maior entusiasmo ideológico esteve, naturalmente, no jornal da “situação”, o Diário da Manhã, no qual se escrevia, também a 1 de Maio de 1935, que «A Nação vai pagar uma dívida sagrada – uma grande dívida, acumulada pelos juros e que vem já do fundo dos séculos; e é Salazar quem a salda! O glorioso Infante de Sagres vai ter, sobre a terra da Pátria, o grande preito a que tem jus: a Memória que assinale e revele aos olhos de todo o Mundo, o Feito magnífico. […] Pretendemos apenas frisar isto: que, se a grande dívida que a Nação mantinha em aberto vai agora deixar de ser, deve-o, única e simplesmente, ao Estado Novo – a Salazar! Na obra de reconstrução nacional, que vai sendo levada a efeito […]. «Estamos diante, pois, duma nova e admirável realização do Estado Novo. Para maior glória de Portugal – e de Salazar!»

E vale a pena, apesar da sua extensão, reproduzir parte de um artigo assinado sob pseudónimo (Ariel), no mesmo jornal, dez dias depois: «Todas aquelas superfícies lisas e imensas que descem da Cruz sobre a Terra só poderão surpreender os que desconheçam o propósito que presidiu aos descobrimentos. É que estes não foram uma série de aventuras mas sim a alma e o corpo de Portugal postos ao serviço da Fé. Não está ali apenas um pilone formidável rematado por uma cruz: está ali, antes, toda a razão de ser de uma epopeia gigantesca alumiada pelas cataratas de luz que o Catolicismo despenhou sobre o arrojo, a boa vontade e o patriotismo de navegadores e guerreiros portugueses. A Cruz envolve, inunda de luz espiritual o infante, os seus homens e a sua obra. Contemplem os admiráveis grupos escultóricos pelo cinzel de Rui Gameiro: vejam o vulto do Infante D. Henrique, de pé, sondando o mistério do Oceano; as figuras ajoelhadas e orantes que o cercam: têm as mãos postas, a espada cingida ao peito, um rosário nos dedos… Dir-se-ia, na sua maravilhosa expressão, que a Cruz as transfigura, lhes entrou nas almas, lhes enche os olhos e o coração… É a crença ardente que atira para a epopeia a gente do Infante: é ela que conduz os seus homens ao embarque, no propósito de dilatar a fé, e os leva a fazerem-se ao largo, na sondagem dos terrores e mistérios do Mar Tenebroso… Querem melhor simbolização do pensamento condutor dos Descobrimentos do que este formosíssimo monumento? O projecto dos irmãos Rebelo de Andrade e do escultor Rui Gameiro será, quando realizado e se nos é permitido dizer assim, a correcção perpétua do errado conceito que certos historiadores puseram em voga acerca dos Descobrimentos. Estes não foram, como tanto se fez acreditar, uma série de aventuras coroadas por chatinagens, depredações e crueldades. Mais alto foi o seu desígnio e pouco importa saber se depois sofreu desnaturações, aliás infalíveis em toda a obra humana. Quis-se dilatar o Império, é certo e não vemos que nisso haja matéria para censuras… Porém, mais do que isso, tentou-se evangelizar, levar a fé ardente a povos e mundos distantes, trazer para Cristo os que desconheciam o divino crucificado… Lembremo-nos de que o Infante de Sagres consagrou a vida inteira a esse propósito sublime e lhe sacrificou todos os sonhos e impulsos da mocidade.» E todos os povos da Terra que passassem ao largo do promontório de Sagres, veriam «que está ali o Infante de Sagres e a sua gente, cuja obra imensa se realizou de olhos postos em Deus… A luz que do alto vem – eis o guia dos navegadores e guerreiros do Portugal descobridor.»

A história de Portugal inscrevia-se neste monumento, como se inscreverá cinco e vinte e cinco anos mais tarde no Padrão dos Descobrimentos, com o mesmo irrealismo; um irrealismo ideológico que nenhum anacronismo conseguiria vencer. E é significativo que naquela página do Diário da Manhã se mencione «certos historiadores»… Entre eles estaria, para mencionar apenas um, Vitorino Magalhães Godinho, que viu o seu livro A Expansão Quatrocentista Portuguesa recusado para publicação pela Comissão do V Centenário da Morte do Infante D. Henrique, em 1960, dado que «esta Comissão Executiva, procedendo à leitura do referido original, verificou que o trabalho de V.Excª., sem dúvida valioso, foi orientado num espírito bem diferente do que presidiu às comemorações henriquinas […]». É da sua quarta edição, de 2018, que reproduz a correspondência então trocada, que é retirada a citação.

Ora, o Padrão dos Descobrimentos, cuja demolição agora é defendida, foi reconstruído por essa ocasião; e, conforme escreve José Augusto França em A Arte Portuguesa no Século XX, «[…] ignorando-se o tempo passado durante vinte anos, com as suas conotações estéticas, garantiu-se oficialmente a atemporalidade histórica da escultura que em 40 vigorava e a perenidade do seu gosto. Leopoldo passou do estafe à pedra a sua teoria de trinta e dois reis, navegantes, frades, sábios e conquistadores, que em duas rampas confluentes, avançam para um D. Henrique plantado como que à proa duma caravela.»

Sucede que, se tal monumentalidade era, no seu tempo, percorrida por uma funcionalidade pedagógica, essa funcionalidade não foi perdida, mas o seu sentido profundamente modificado. Sucede que os povos precisam das representações de que é feita toda a sua história; e sucede, ainda, que é demasiado tarde para esse ajuste de contas – o seu vazio, ou a sua substituição por um outro monumento definido pela mesma temática dos Descobrimentos e Conquistas, inevitabilidade verosímil, tornaria ainda mais icónico o monumento que hoje é apenas, para a maior parte dos portugueses, se não uma narratividade ultrapassada da história portuguesa, pelos menos uma mitografia que se admira pela sua escala e pouco mais. Isto, todavia, não significa nem traduz uma inocência programática que nunca foi, nem é, apanágio de tal realização. As formas e a estética do Padrão dos Descobrimentos estão longe de constituir novidade de qualquer natureza e a sua demolição não faria lamentar uma grande obra de arte; mas correr-se-ia o risco, demasiado elevado, da sua lamentação e o monumento seria incensado; de alguma maneira regressaria às suas origens ideológicas. O baixo índice cultural de natureza histórica dos Portugueses, a sua quase inexistência de consciência política consequente, chorariam um exemplo lídimo de arte “clássica” e “bem feita”. É melhor deixar-se em paz o Padrão dos Descobrimentos e, em vez de sonhar com a sua demolição, explicá-lo.

As fotografias da maqueta do monumento ao infante D. Henrique para o promontório de Sagres foram retiradas de http://tribop.pt/TPd/Monumento_Sagres.

As fotografias do Padrão dos Descobrimentos pertencem ao Arquivo Municipal de Lisboa e uma, devidamente identificada, ao Arquivo Histórico Maceira Liz.

epistemologia do silêncio, um diário da peste, 23

A luz que regressa ao mundo, atemporal, é a mesma, vidas inteiras, séculos incontáveis de uma origem impensável. A questão que percorre estes dias que parece terem já abandonado o Inverno, estes dias entre os gumes do incessante e do insano, é esta: onde estamos? E, se chegamos a uma resposta verosímil ou plausível, ou a nenhuma resposta, uma segunda pergunta, derivada do resultado da reflexão suscitada pela primeira, ou derivada, mesmo, apenas do vazio, se nos impõe: o que nos espera? Conhecemos, ou fingimos que conhecemos, as circunstâncias que definem o onde nos encontramos, mas essa constatação, mais ou menos fundamentada, não é suficiente, pois a resposta à pergunta inicial requer que concebamos onde estamos; que tenhamos um conceito incisivo do lugar humano onde existimos e vivemos, dado que reconhecemos que já não coincidimos connosco da maneira como nos entendíamos, ou seja, interiorizámos uma alteração radical do quotidiano que tínhamos e do quotidiano que pensávamos. Estamos num território conceptual – esse lugar humano – onde a linguagem foi mudada e o discurso reformulado profundamente. Nem a passagem do tempo reconhecemos já: quedámo-nos num imóvel tempo presente onde impera, só, o agora, cuja ruptura com o passado identificamos no discurso que nos chega do mundo, cuja relação com o futuro foi redefinida porque cessou, ou melhor, se suspendeu, em potência e em projecção, a forma como entendíamos o devir pensado. Estamos, em suma, perdidos e reféns, ainda que o discurso que nos é dirigido faça por desmenti-lo e nos certifique de um dado rumo pensado e certo. Todavia, os sinais, materiais e simbólicos, do andaime que serve o futuro em delineamento, são claros o bastante no que concerne às possíveis orientações que podemos antever quanto ao futuro que nos aguarda. Porque, embora tenhamos sido espoliados de um futuro na forma imaginada e projectada que tínhamos interiorizada, existe um futuro. Na verdade, aceitamos, na relação contratual que estabelecemos com o Poder, uma hipoteca sobre o futuro e resignamo-nos quando dele nos vemos espoliados sob o argumento de um bem maior ou de um objectivo necessário. As modificações políticas e sociais não retrocedem, e se parece que isso acontece, o que na realidade sucede é uma reformulação presente, uma vez que o precedente se estabeleceu. A pandemia instaurou, para todos os efeitos, um estado de sítio que não retrocederá, pois a realidade virológica impôs-se e tornou-se, de facto, um pretexto do Poder para uma acção nova requerida por uma sociedade e um sistema de trabalho reorganizados. A pandemia fortaleceu o Poder e o discurso da informação, o poder dos meios de comunicação. E o robustecimento destes poderes não pressupõe a preocupação pedagógica. A informação de tipo científico está resumida à intervenção breve dos especialistas nos noticiários televisivos como se se tratasse de um intervalo legitimador daquilo a que se chama serviço público. Mas, de facto, essa informação é muito reduzida, quer pela qualidade das perguntas, quer pelo seu lugar na gestão dos temas dos jornais televisivos. A pedagogia, tal como a cultura não é, nunca foi, uma preocupação dos poderes instituídos a não ser que os sirvam, isto é, que sejam inócuas em relação aos seus procedimentos. O futuro, em termos de decisão política e de organização social, está já definido pela omnipresença do poder sanitário. Depois desta pandemia outras pandemias virão e esse será o quotidiano das pessoas. O Poder reconfigurou-se, em termos de discurso e de significado. A saúde pública passou a ser um objecto do exercício do Poder com consequências políticas e sociais e o juízo que sobre ele impende medido pela eficácia com que governa a situação sanitária. Sobre o resto paira a sombra da decisão que não é objecto do crivo público, ou da chamada opinião pública. O estado de excepção transformou-se no estado geral, justificado pelas “comunicações ao País” dos dirigentes. O discurso destas comunicações é pobre em vocabulário, pois o seu significado é o da normalização, dado que nada acrescentam à informação veiculada pelos meios de comunicação, em particular pela televisão.
A televisão tornou-se num perigo para a democracia, as suas “agendas mediáticas” poderiam facilmente destruí-la, assim surgisse, no espectro político um chefe com a inteligência que a destruição do regime requeresse. Enquanto a indigência cultural prevalecer na classe política estaremos a salvo, mas por pouco mais do que isso, dado que o poder económico e financeiro abraçará qualquer situação que lhe seja favorável. A democracia é um regime frágil e a generalidade das pessoas, que o dá como garantido ad eternum, não tem essa consciência. Os noticiários televisivos são inequivocamente assumidos, pelos produtores dos seus conteúdos e pelos espectadores, como um teatro de dramatização da realidade; tornaram-se dementes e alienantes e todos os dias repetem estratégias e discursos, resumidos, como estão, aos números da pandemia e aos eventos do mundo do futebol. A informação cultural é inexistente. Neste teatro dramático, que é também um teatro da vulgaridade mais boçal, a televisão transformou-se num poder totalitário que preenche o tempo, salvo raríssimas excepções, com programas vulgares, telenovelas e futebol. A pandemia domina toda a informação e o seu conteúdo resume-se a números actualizados, a peças dramáticas sobre casos individuais, e à repetição de momentos de vacinação. O igual tomou o lugar do diverso e não existe mundo fora desta situação regulada pelos números das tabelas de audiência. A televisão colocou-nos num teatro dramático e fora do Mundo; a informação é uma gestão do drama que a um tempo prende o espectador e o aliena inculcando-lhe os sentimentos facilmente domáveis da ansiedade, do pânico, do medo. Por outro lado, a linguagem uniformizou-se pela repetição e as expressões usadas são invariavelmente as mesmas: “estar no terreno”, “doentes covid e não-covid” (as outras patologias tornaram-se invisíveis), “linha da frente”, “profissionais de saúde”…
O regresso dos fascismos não é possível, a história não se repete e as circunstâncias actuais são muito diferentes daquelas que, nos anos 1920, conduziram à destruição das democracias ocidentais. Mas é possível, todavia, a emergência de democracias totalitárias – é esse o futuro que nos aguarda; esse e a doença como instrumento político. A televisão totalitária, que pressupõe contornos doutrinários dissimulados, mas claros e eficazes, é o primeiro nível dessas novas democracias totalitárias que têm já do seu lado a tirania da anuência que transformou, há muito tempo, a consciência política individual, diluindo-a nos pressupostos da sociedade do consumo e da alienação digital. O futuro é a demência.

JM, 3 de Março de 2021