Diário, 268

2023, Setembro, 14 – A vida é prodigiosa, sabes bem que já tens idade para o compreender e que esse entendimento, fruto dos teus trabalhos, é nobre. Na verdade, estás a transpor o umbral da velhice, embora sobre isso tenhas a tendência ingénua de te mentir, na profundidade de ti, ou então não seja exactamente a velhice o que sentes. Seria insensato considerares que ainda és um jovem – o que aprendeste afastou-te da infância e da juventude pois cada idade da vida tem o próprio que cabe nela. Terás sempre a memória, mas como é evidente, não as atitudes próprias dessas idades. Todavia, o teu riso terá ainda alguma coisa que te liga à infância, a tua ilusão de força algo que vais buscar à juventude que tiveste. Mas não podes alterar as idades da vida, sabe-lo bem pelo ofício que tens, ainda que alimentes em ti ambições presas ao passado. Mas se isso acontece não estás a ser razoável, projecta as tuas ambições para o futuro, que é a maneira que a sabedoria tem de se revelar. Também não digas que és sábio – não o sabes inteiramente e aguarda que os outros to digam, se o quiserem.
Acendes um cigarro e esperas as palavras que te cumpram o dia. A vida não apaga sonhos, mas o tempo transfigura-os, torna-os mais de acordo com a acuidade do que pensas e com a importância das coisas. Na candeia metade do azeite já se consumiu, mas resta ainda a outra metade a não ser que a não entendas e vivas como tal. O que realizaste tem ainda o seu dobro. Apreciarás de novo a sombra das árvores, a seara num dia de estio, o mar nas suas metamorfoses. Encontrarás a tua explicação do mundo até que estejas, por via das circunstâncias, já “fora” dele. Mas ainda aí a tua explicação não cessa. No indizível de ti sabes muito bem que a vida te foi sempre prodigiosa, mesmo no sofrimento e no silêncio que são as formas com que construíste a lucidez que te guia. Aceita a tua idade, pacifica-te na prodigalidade da tua vida, pensa na metade do azeite da lucerna que arde.

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