Diário, 297

2023, Dezembro, 30 – Hoje, a lua reflecte uma invulgar luz intensa que desvela; uma luz magnífica que faz a noite parecer um dia queimado. Mas quando afasto a cortina da janela, as nuvens velaram a redondez luminosa da lua e a escuridão retomou o seu domínio absoluto. Em breve, a grande divisão do tempo nos ditará uma nova convenção do rito da passagem de um mundo a outro e onde se joga, como se fora aos dados, esperanças e desejos juramentados, expectativas quase pueris, assim nos fosse dado novo e complexo brinquedo que outro ano durasse nas nossas mãos inquiridoras do seu maquinismo. Na matemática da vida precisamos desse ritualismo para nos situarmos em nós e no mundo; desse recomeço simbólico que localiza as veredas do passado e arroteia as clareiras a que nos propomos no futuro. E é tudo; o resto são risos bailando no ar.

Rembrandt, Autorretrato rindo, cerca de 1628, óleo sobre cobre, Los Angeles, Getty Center

Diário, 296

Somos a vulgaridade de sermos o resultado do nosso passado e assim o seu cúmulo; somos feitos de camadas estratigráficas, como a terra e os seus milhares de milénios e, por conseguinte, a matéria de um constante passado que em certas vezes sucede procurar-nos sem que o indaguemos, assim pelo menos o pensamos, e, outras, procuramo-lo nós, por variadas, mas no íntimo, poucas razões – a saudade ou a recusa, porém, sempre sob a figura do juízo, na qual se enterram bem fundas as paixões. Na verdade, como diz Edmund Husserl nas suas lições sobre a consciência íntima do tempo (1964), «o que é re-presentado, é o julgamento, não o que é julgado.» Portanto, se o passado é imutável, não o é o nosso juízo sobre ele, não o é a nossa memória. O tempo, à medida que vai vencendo, concede-nos continuamente novas re-presentações do passado. A questão intrínseca é a da nossa relação com o passado, o qual não é, assim como a vida, segundo Yourcenar, «tal como a vivemos», «um momento de repouso.» Nada repousa no passado, tudo permanece vívido sob as duas formas da ferida aberta ou da rugosidade da cicatriz. Mas, o que sucede quando esse passado ficou marcado no tempo, ficou escrito? Ele toma então uma materialidade que apenas a memória – que aos poucos quase tudo vai tornando abstracto – não alcança. O que está escrito não pode ser mudado, todavia, pode transfigurar-se pela memória presente e por um julgamento revestido de maior acuidade. Mas temo que essa transfiguração por via do julgamento já não pertença ao passado, mas ao domínio da literatura. Tenho ali, na última prateleira da estante mais alta, os cadernos, os diários gráficos de uma parte da minha vida, desenhos e escritos que raramente revejo, mas quando isso sucede, como há algumas semanas, não é a saudade que acomete o meu espírito, é a questão. Tudo o que aquelas lombadas desiguais albergam, pertence a um tempo que passou e que agora não poderão ser outra “coisa” senão matéria de literatura. Já terão servido.

Edmund Husserl, Leçons pour une phénoménologie de da conscience intime du temps, 3.ª edição, Paris, Presses Universitaires de France, 1991, p. 125.

Marguerite Yourcenar, O Tempo esse grande escultor, tradução de Helena Vaz da Silva, Lisboa, Difel, 1984, p. 13.

Fotografia: iStock / Guetty Images

Diário, 295

2023, Dezembro, 23 e 26 – Somos os dias e a sua luxuriante visibilidade; a matéria restrita do tempo, a sua exacta, implacável medida. Decorremos, entre a realidade e o mito, mas é deste, muitas vezes, que nos alimentamos, é neste que nos iludimos e por fim é nele que nos perdemos, nós que estamos destinados à terra ou ao fogo. Todavia, precisamos dos mitos, representam a nossa outra metade, divididos como somos, entre a realidade e a fantasia. Precisamos dos mitos para sobrevivermos inteiros perante o que somos e a angústia de o sermos ausente de explicações. Depois, existem as palavras, as palavras que são, elas mesmas, no íntimo dos seus significados, denúncias involuntárias da verdade; é por isso que pertencem ao domínio da traição. Quer dizer, ao reflexo e, enfim, no seu último grau de cansaço, ao silêncio que salva, ao silêncio onde ecoam. As palavras mitificam-nos, têm esse desmesurado poder, essa insuspeitada fraqueza. A verdade que das palavras permanece é no silêncio que vive depois, com a lentidão do tempo interior, que as guarda. Mas perduraremos, ainda que o tempo tudo acabe por consumir e à mudez resuma o mundo.

No fulgente princípio onde o caos secreto

No fulgente princípio onde o caos secreto
das estrelas perspectiva a matéria criada,
há-de ter o seu início o dia que mais de perto
trará a natureza recendente das rosas,
caleidoscópio de cores férteis, ansiosas,
que resumem a salvação da enseada

onde lançam ferro os veleiros perdidos
do mapa e da história desenganados,
outrora imponentes e no mar iludidos
por uma terra ardente de árvores de fruto
em que se pudessem guardar do luto
de marinheiros sem nome sepultados

nas águas negras e gélidas do mar oceano.
Com o tempo foram-se os veleiros desfazendo
na praia durante a maré baixa, ano a ano,
sob a roda da fortuna que do mar o fragor
fazia girar. E chamavam-lhe sorte, dor
insofrida de que todos iam morrendo.

E ao som rude dos batuques cantavam
aqueles homens do mar as suas aventuras
solitárias sem horizonte. E choravam
a cada volta da canção triste sincopada
cheios de saudades da casa gritada
em cada verso que os minava de torturas.

Deram-lhes água, pão e carne salgada
sob a condição de não entrarem na aldeia
pois os batuques traziam amaldiçoada
a noite profunda em que indefesos dormiam.
E assim, fora de navios, reconheciam
o destino de haver por termo uma ceia

em que todos partissem na sua canção
como se nunca tivessem chegado a tal lugar.
Uma ceia de peçonha na palma da mão
que os libertasse do sonho que viviam,
de um trago só enquanto o batuque ouviam
e deles só restasse a imagem vazia do mar.

Ainda hoje se ouve dos batuques a toada
que todas as noites se solta da praia nua
e percorre a aldeia de fantasmas habitada:
serpenteia pela ilha, nos cavalos do vento,
os espíritos dos marinheiros, o seu lamento
resplandecente de dor sob o reflexo da Lua.

Ivan Konstantinovich Aivarovski (1817-1900), Voilier dans la tempête

Diário, 294

O cabo dos sonhos é um precipício sobre o mar, a noite impensada, uma terra inverosímil, branca, para além do corpo, cujo princípio assinala o reverso da escrita, a folha translúcida onde os caracteres manuscritos se confundem, de um e de outro lado. A luz que haverá para além dos sonhos.

Claude Monet, Impression, Soleil Levant, óleo sobre tela, 1872, Paris, Musée Marmonttan Monet

Diário, 293

2023, Dezembro, 16 – Na estação ríspida do frio, as árvores crescem como traços desenhados por mão nervosa, aleatórios, traços solitários até ao seu expoente, que se cruzam e negam, traços com seiva, falsamente mortos, que o vento gélido vai secando. O mundo cíclico. Por estes dias, extenuados dos dias que não foram, as trevas são renegadas com luzes concluídas e minúsculas, acesas de passado.

Dic. Univ. D’Hist. Nat.

Diário, 292

2023, Dezembro, 14 – Por esta hora não me guardo da noite. A transmutação das horas alimenta-se do ritmo desta escrita. É a construção do passado, esse belo touro branco que o rei Minos poupou, ao contrário da condição que lhe impusera Poseidon. Pasífae, a sua incauta mulher, levada por Afrodite, copulou com o belo touro branco e o Minotauro começou a reinar dentro do labirinto. Escrevi que o passado não me atormenta. É a verdade, mesmo que verdadeira ou falsa, mas é a verdade. Algures, dentro do labirinto, o chão estremece sob a força dos duros cascos do Minotauro. Teseu, com a cumplicidade de Ariadne, matou o Minotauro; a sua memória, porém, jamais se perdeu. As memórias sempre lampejam e o espírito nada pode contra esses relâmpagos que fulgem entre sombras ou sóis. Na realidade, somos o que fomos, vencedores do Minotauro ou vencidos por ele. E somos também o labirinto; é essa a tragédia, a consciência disso, o que fazemos dela.

Minotauro, cópia romana do início da Idade Clássica, mármore, Atenas, Nactional Archaeologic Museum of Athens

Diário, 291

2023, Dezembro, 13 – Sei que me aproximo da velhice, mas não sinto medo. Não: já estou na velhice, dentro de mim já cheguei. O passado vai sendo cada vez maior, todos os dias se expande; não me atormenta, não me aproxima de qualquer abismo, e quando acontece assaltar-me alguma memória, revela-se sempre na condição de primeira vez a ser olhada; é uma placidez que arrebatei ao tempo, uma solidão biológica. Apesar disso, não posso dizer que tenha abandonado sonhos antigos que permaneceram comigo; na verdade, tornaram-se mais firmes e o seu sentido mais evidente e profundo. É-me dado, agora, realizá-los como nunca; já não sofro pelos meus sonhos. Estou no lugar onde sou e como sou e o que me comove já me comovia.

João Cristino da Silva, Recuar da Onda, óleo sobre tela, 1857, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna

O silêncio: um fragmento

O silêncio é um enigma em que nos encontramos e reconhecemos; não bem um espelho, que é uma realidade evidente, para a qual mais facilmente encontramos uma linguagem, mas um vagar, um não-lugar que nos atinge no centro da respiração e ao qual nos podemos entregar sem restrições. Esta ausência de condição perante o silêncio significa um apogeu da capacidade legível dos outros e do mundo; pessoas e coisas denunciam-se no silêncio e é talvez por isso que o silêncio é o lugar omnisciente da música, que nele existe, não como um complemento, mas como uma natureza. Perante a arte, aquilo a que podemos chamar de “grande arte”, nada mais existe, num princípio que eclode, entre nós e ela, do que o silêncio; é a partir desse silêncio que se estabelece um vínculo predisposto à recepção e à inteligibilidade. A primeira relação entre nós e a arte é uma relação silenciosa onde não vivem ainda palavras, mas apenas uma fruição nua. O silêncio é uma forma devastadora de nudez e por isso a insuportabilidade do silêncio é a matéria da desordem irracional e da mentira intransponível. A situação da insuportabilidade do silêncio é a de uma angústia que não consegue ordenar a percepção da realidade; que a transforma não em algo que pode ser ordenado, mas numa coisa que se impõe sozinha. Assim, o silêncio é o paroxismo nu. O silêncio é o cuidado com que me penso; uma inteireza do meu temperamento, os meus lábios levemente fechados, o erotismo da solidão. As folhas das árvores quase transparentes quando o sol sobre elas incide; o mar verde e o seu cume de espuma que desaba com violência na areia; a vida ruidosa e histérica das cidades repletas de ansiedade; a terra e a película de poeira que nos aguarda como figura do destino; o resplendor da videira sob o pino da luz. Nada está vedado ao silêncio. Condição primeira de todo o conhecimento, de toda a contemplação, de todo o movimento íntimo dos corpos, o silêncio é a linguagem informe a que não é possível voltar o rosto se se está consigo. Anterior ao verbo, o silêncio é a origem de tudo. Rembrandt. Na recepção do pai ao seu filho pródigo, não há drama, apenas o silêncio do perdão das mãos do pai sobre as costas vergadas da derrota da insolência do filho e a cabeça deste, com os cabelos cortados rente dos condenados, que se acolhe ao silêncio misericordioso do peito do pai. Toda a palavra se exime; o silêncio dos gestos define o âmago da acção que já não existe, do erro do filho que volta; que eloquência de silêncio! E, porém, toda uma história é contada. Nada mais é digno de registo, nesta história do filho que se perdeu, do que o silêncio que marca o termo do sofrimento do pai e das atribulações do filho. E é assim que podemos entender o silêncio: é o plasma do sangue; nada pode existir fora dele, pois ele é a origem do mundo.

Rembrandt (1606-1669), O regresso do filho pródigo, óleo sobre tela, cerca de 1668, Museu do Hermitage

Diário, 290

2023, Dezembro, 11 – Acontece lembrar-me dos sonhos que tive; afasto a cortina e eles lá permanecem, intactos, indiferentes ao largo tempo que decorreu como a passagem tumultuosa de um rio. Eram assim os meus sonhos, tumultuosos, e tanto, que enquanto ousei praticá-los senti não ter força suficiente. Os meus sonhos não saíam do mesmo lugar, era por isso. Depois, isto é, hoje, isso não é importante, o que conta é o fio de prumo. Inteiros, como no tempo que foi o deles, como um fogo quase eterno, os meus sonhos persistem como a força das mãos de um náufrago; não os interrogo. Ainda os espero. Como as respostas que nunca chegam do som do mar verde e revolto. Ainda os espero. Transfigurados pelo meu desejo sobre eles, os meus sonhos vivem exactamente. Não há lonjura entre mim, os meus sonhos e o seu tempo; esperar é habitá-los. Se o sonho não pode mover um gesto da morte nem o vento excruciante que lhe desafia o beijo, evita o abismo de um olhar na direcção do passado. Os meus sonhos parecem não ter passado, mas isso é uma impressão espúria, todos os sonhos têm passado. De cada vez que ouço os meus sonhos nas telas que apodrecem lentamente com a humidade, a certeza deles é um magma em que me queimo; essas telas acusam-me. O tempo acumula-se de uma forma grosseira; e os meus sonhos assim também, esperando. Os desenhos antigos dizem-me apenas que existiram e que entre mim e eles não se desfia o fio do ressentimento nem algo que alguma vez se tenha perdido. Os meus sonhos permanecem como a terra que gostaria de cultivar.