patologia do acaso, diário, 206

2022, Setembro, 21 – Estou em face de um poema branco. Junto à parede um pequeno candeeiro ilumina os livros alinhados nas estantes. Pendurada na lateral de outra estante está a estrada da vida simbolizada por um ramo do dia da espiga e um pedaço de pão. Escrever é uma angústia obscurecida pela solidão. Mas não é possível escrever fora da solidão. O poema branco. Chegar à inexistência e subir. As palavras possíveis, e as ideias antes delas, declinam no meu espírito, espelho sem imagem. Até considerar que estão certas, as palavras. Um sacrifício ao seu apelo. A poesia não é apenas um sentimento, uma inspiração, uma duplicidade da Natureza – não é sobretudo isso, nem a palavra vulgar sangue. Trabalho da linguagem num sentido ontológico. «Nada pior do que a desvirtuação tecnicista da essência da arte, a pretensão estética da técnica por si mesma, a sobreposição do lance técnico ao lance estético. No caso da poesia também.»[1] Não aparecer. O silêncio indecifrável. A lâmpada do candeeiro sobre a mesa de trabalho reflecte-se no vidro da janela contra a escuridão. Preciso de ir ver o mar novamente, sofrer-lhe a luz. Descer as escadas até à praia. André Malraux diz, algures em A Condição Humana, pela boca de Kyo, uma das personagens, que cada um assemelha-se à sua própria dor.


[1] Sousa Dias, O que é poesia, nova edição aumentada, Lisboa, Sistema Solar (Documenta), 2014, p.59.

O Livro dos Mortos / 6

As linhas mudam, debaixo do terror do esquecimento que se eleva do sono
durante o triunfo da noite, uma incerteza de raízes arrancadas, e cheias ainda
de terra. Indiferente à morte, uma felicidade negra, um orgulho de escuridão,
acompanham os dias que enfraquecem desde o solstício, num fogo de sombras
que desenha manchas sob as formas dos objectos, cansaço elíptico do mundo.
Na cratera que ficou depois das raízes, desabou o uivo dos cães nocturnos.
Ondulam falas suspensas por arames monótonos, falas que vagueiam
no destino dos mortos sobrevoado por corvos que esperam. As semelhanças
dos corpos, por fim, são iguais em contradição das suas matérias
e das suas naturezas definidas por veias de realidades opostas
e combinação de circunstâncias. A antinomia reina nas causas da vida e da morte,
justificando a ansiedade dos corvos em descerem sobre o mundo que há-de cessar
nas cinzas previstas. Todas as palavras que procuro nada podem contra isso,
poeira como são do seu próprio incêndio.
Sobem do silêncio amarelo os perfis das árvores definidas pela claridade
atenuada das perguntas basculantes e das respostas que se escondem
no reverso das portas sustidas pela mudez das pedras redondas trazidas
do oceano onde os corvos enfim pousam no silêncio fixo dos seus olhos
quando docemente se movem nas trevas que os submergem, vorazes.
Muros de basalto solto cercam a cratera das raízes. Fechei-me em casa
e dei de comer aos corvos que grasnavam a fronteira do esquecimento
medida pela música em modo de repetição.

O Livro dos Mortos / 5

Desejo e morte imperam sobre a razão e os sentidos;
são espinhos de cardos que se enterram na carne, devagar,
ao longo de um tempo roubado às dissensões, até ao rígido frio.
O sangue decai onde vigorou o sexo e as pequenas mortes, palavras
repletas de eternidade; as lágrimas e o riso de uma existência
imperfeita antes do fim e da sua aflita redenção. Dizem. No entanto,
a morte sobrepõe-se ao desejo como a tudo. Foi em tempos um mistério
cercado pelo medo a que todo o desejo se vergava, a que toda a condição
se subtraía como se corpo fosse o pecado final que não tinha saída;
um labirinto derrocado de fluídos, suor e cópula onde pairava
umas vezes a vingança, outras o arrependimento. Cheira a rosas e a morte.
Dos interstícios das palavras sobe um desejo de infinitude que não reúne
em si mais do que a imaginação do absoluto caído na putrefação.
Nada há a considerar sobre a morte e tudo sobre o desejo, o presente
desinteressado onde reside o futuro que se consome em expectativas
formais. Todos os pensamentos analíticos se turvam quando
as unhas se cravam na pele e as mãos deslizam por um corpo suado;
então a morte está vencida, então a morte regressará, construída
por todos os gestos que se amontoam no quotidiano e a relegam
para o verso da realidade num jogo de acaso imponderado.
A morte é lacónica, congrega em si todos os territórios habitados
e os movimentos amorosos que creem amachucá-los na boca.
Não passa pelo lume nem pela água, é uma ravina infinda julgada
pelo nevoeiro superior que une as margens como um caminho ilusório.
Passamos e a morte, indestrutível, fica, na fragilidade das memórias
que se esperam renovadas, numa espécie de Natureza, feitas
de material perecível que o tempo devorará,
sob um cheiro de rosas e de tecidos putrefactos, enjeitados para a distância.