patologia do acaso, diário, 223

2022, Novembro, 26 – Chegou o frio que anuncia o Inverno no hemisfério Norte. Daqui a pouco menos de um mês ocorrerá o Solstício de Inverno e as ervas e as culturas amanhecerão sob uma película de gelo. É o tempo que se cumpre na irreversibilidade dos ciclos naturais. Adaptamo-nos a essa irreversibilidade numa narrativa de acções escritas nos símbolos e nas alegorias motivadas pelo tempo. A noite muda, recua no dia, acentua o frio. Desejamos o fogo. Imaginamos dentro da representação possível do tempo, isto é, conferimos-lhe imagens, tornamo-nos imaginários, isto é, o nome que os antigos conferiam aos escultores e aos pintores, construtores de imagens. Fui no outro dia ver o mar, a luz era estranha, a princípio sombria, tocada pelo céu cinzento, depois mais aberta quando o sol triunfou durante algum tempo. A chuva acentuava a dramaticidade das alterações da luz. Vagas fortes, tensas, venciam os limites do paredão elevando um rendilhado aleatório de espuma muito acima do chão. Cedi a uma ou duas fotografias configuradas pela vulgaridade de aprisionar o tempo numa imagem. É preciso ver, ignorar a fotografia quando é aquele o objectivo principal. Parava para observar a beleza alterada do mar. No risco do horizonte, um cargueiro avançava devagar por causa da minha distância. Penso agora: o que fazemos do tempo? Dizer que do tempo fazemos o que queremos não é a inteira verdade, as circunstâncias, as contingências, dobram-nos o tempo, que não é uma realidade única, conforme no-lo dizem a história e a arte, que a narram. Essa realidade única corresponde à consciência da nossa identidade, pois seguimos o tempo, conforme a memória e o presente, em acordo com quem somos. É provável, afinal, que o tempo seja uma metáfora, umas vezes, uma alegoria, outras. Não preenchemos o tempo nem dele fazemos alguma coisa. A sua invisibilidade de essência rejeita, a princípio, palavras e imagens; o que fazemos existe no tempo, mas o tempo escapa ao que fazemos. Dele conseguimos alcançar uma representação descoincidente, ainda que essa representação permaneça. Mas já não é o presente. De facto, creio, a consciência e o corpo são para nós a cabeça e o rosto do tempo. E, todavia, estamos à mercê do tempo, aprendemos a qualidade das perguntas, envelhecemos, a relação com a realidade imanente e com a realidade exterior altera-se. Eu sou o tempo e a sua transcendência, conforme o consigo pensar e ver a partir das representações a que se atribui uma data. Diz Husserl: «Tout temps perçu est perçu comme passée qui a le présent pour terme. Et le présent est un point limite. A cette loi est liée chaque appréhension, aussi transcendante qu’elle puisse être.»* Neste ponto limite do tempo, nesta transcendência possível, eu sou o tempo que me atribuo, como a decisão de ir ver o mar num dia de Outono.

* Edmund Husserl, Leçons pour une phénoménologie de la conscience intime du temps, 3e édition, traduit de l’allemand par Henri Dussort, Préface de Gérard Granel, Paris, Presses Universitaires de France, 1991

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