O Silêncio | Capítulo 3

Havia cadáveres na praia que o mar devolvera e não era possível sepultá-los. Os seus parcos haveres foram pilhados por alguns dos marinheiros. Incertos do seu destino, tudo o que tivesse o mais pequeno valor poderia vir a ser útil. Longe da rebentação das ondas, grandes pedaços de madeira flutuavam e embatiam nas rochas, ao redor do bojo do navio naufragado. Os seis homens que escaparam com vida ao naufrágio, decidiram, entre todos, tomar o caminho na direcção do Sul, pois depressa queriam abandonar aquela terra inóspita sobre a qual pairavam as lendas nefastas que tinham ouvido nos navios. Encontrariam algum caminho e nele alguma aldeia que lhes servisse de refrigério. Neste ponto, o homem a quem o taberneiro dera o conselho de que seguisse na mesma direcção dos outros, decidiu regressar à aldeia, apesar dos avisos e do temor dos restantes, deixando-lhes a sua bússola e, assim, para sempre o seu Norte. Sabia, no íntimo, e até na sua matéria orgânica de vasos, veias e órgãos, que encetava uma jornada sem regresso e pensava que não tinha em si nenhum desespero nem causa exterior que o impelisse. Chovia e, no seu rosto, a água sã misturava-se com a salsugem e os olhos ardiam-lhe. Os náufragos compreenderam, por fim, que aquele homem se atirava para um destino do qual ficaria para sempre prisioneiro. Tentaram dissuadi-lo, abandonaram a tenda improvisada e partiram para Sul. O homem atravessou os campos durante dois dias e comeu a carne salgada que retirara de uma barrica que não fora desfeita pelo naufrágio. No silêncio interior do vento frio que lhe secava a face, estava convicto da sua decisão. Na solidão daquela terra que parecia não ter sido tocada por qualquer deus, pensou durante todo o tempo do seu andar que, a partir dali nada deixava para trás, nem a marca dos seus passos, e que o único regresso era aquele a que se propusera, ainda que ouvisse o mar contra a falésia. Aos poucos, a linha do mar foi desaparecendo e com esse afastamento desaparecia também toda a sua vida passada. Os longos anos que andara embarcado tinham esfacelado a ligação aos seus, que agora se mudavam em desconhecidos. Caminhava ligeiramente inclinado para a frente, contra o vento forte e húmido. Chegou à aldeia ao nascer do sol do terceiro dia, ainda a bruma gelada da manhã não levantara. Foi o primeiro homem a entrar na taberna, alumiada apenas por duas grossas velas pousadas sobre o balcão de madeira suja e deformada pelo uso. Sobre as outras poucas mesas, as velas estavam ainda sem lume. A única janela, de pequenas dimensões, tinha a portada fechada. Aproximou-se do balcão e a luz revelou-lhe o rosto. O náufrago era um homem ainda no vigor da idade, mas com a pele crestada pelo sol e pelo sal do mar, e rugas vincadas depois das pálpebras, olheiras profundas, ossos pronunciados. O taberneiro reconheceu-o e fixou-o com severidade durante um breve momento dizendo-lhe que cometera um erro ao voltar para a aldeia, pois nunca mais regressaria aonde quer que fosse. O náufrago pediu um copo de uísque e pousou sobre o balcão um xelim. Só depois de beber disse que não regressara, que o lugar sempre residira na sua mente, que o procurava sem o saber e que demandava a origem do silêncio. O taberneiro, então, virou-lhe as costas e, depois, colocou-lhe à frente um pedaço de pão e um naco de carne seca. A seguir chegaram outros homens, bem vestidos e com golas impecavelmente brancas e bordadas. O taberneiro acendeu as velas das poucas mesas, e serviu a cada um o uísque de um xelim. Dando conta do náufrago, os homens não pronunciaram palavra e acenderam os seus longos cachimbos. A aldeia tinha uma só rua empedrada e de cada um dos lados, as casas alinhadas de modo irregular. Algumas estavam edificadas sobre pequenos rochedos. Na taberna, sob pesadas vigas de carvalho enegrecidas, os habitantes da aldeia permaneciam de pé, na obscuridade pesada, como se fossem testemunhas juramentadas de um invulgar acontecimento. O náufrago, que ainda não revelara o seu nome, pousou o bornal sobre o banco corrido, perpendicular ao balcão. Este gesto fez com que o taberneiro lhe dissesse que se ele procurava a origem do silêncio teria de passar pela sua maldição. Logo depois, os homens, que o náufrago não conseguia distinguir na penumbra, começaram a falar entre si.

Um dia ficaremos na sua voz sem que ninguém saiba

Choveu, mas agora, de toda a água celeste, resta apenas, no telhado de zinco da casa onde escrevo, o som breve das bátegas que se soltam da copa da árvore grande. Compreendo que a sua voz deve então habitar todo o existencialismo cuidadoso da noite. Quero dizer que quando não me entendo no que escrevo, quando a poeira das palavras equivale a nada, procuro a sua voz e a noite comum adquire o sentido supremo da beleza das coisas tristes. Compreendo, assim, ouvindo-a, que verdadeiramente ela transfigura os poemas que canta inventando-os como se as palavras, pela alquimia da sua voz, fossem reescritas sempre pela primeira vez. Isso acontece porque o “mesmo” nunca é o mesmo, ainda que a ouçamos nos discos onde a sua voz está fixada. Há nela uma forma perene de perfeição, uma força movente tão clara, que nos conduz aos abismos do que somos e, aí, encontramo-nos na sua voz. Escrevo-a, e nela verifico que as minhas palavras se revestem, no seu sentido mais profundo que é a natureza nocturna da sua razão, de um abandono longínquo e que, em suma, a ela pertencem. E os abismos também contêm em si uma beleza vertiginosa que irreversivelmente nos chama. Tudo em Amália é um não-saber – um desespero desse não-saber que sofre as palavras e mitiga o ser que nela se encontra, mas, sobretudo, se revê. Como escreveu Georges Bataille, «a dificuldade, no desespero, é permanecer íntegro.» Amália oferece-nos esse tipo de desespero, o mais difícil, aquele que se cala e se transforma em outra “coisa”. E, num movimento elíptico, essa outra “coisa” é precisamente a voz de Amália. Lembro, relembro, vivo. Mas o tempo, por mais vívida que seja a memória, vai-se afastando lentamente, como a mão de um condenado a afogar-se. E até o tempo não vivido vai ficando cada vez mais longe – como estar dentro de uma história que sabemos ter um fim. É aí que cedemos, como ela, perante a ausência de sentido, essa falta. O importante, porém, é que acontecemos na sua voz, e nela o nosso esquecimento será guardado. Um dia, ficaremos na sua voz sem que ninguém saiba.

Fotografia: José Tudela, Lisboa, 30 de Dezembro de 1964

Fragmento: A sociedade da invisibilidade

Somos náufragos de um mar de sangue em busca de uma terra que nunca alcançaremos, o primordial “Paraíso” traduzido pela perfeição e pela felicidade sem questões, lisa. Mas tanto a ideia de perfeição como a ideia de felicidade apresentam-nos questões e esperam respostas, dentro das quais cedemos. Emergimos nus, cobertos por uma película desse sangue para “algo” a que usualmente chamamos “destino” – um livro apócrifo cuja leitura nos é vedada e, por consequência, num movimento hiperbólico, tende a minorar em nós a capacidade plena de nos pensarmos e, assim, de tornarmos legível a realidade com um “corpus” em que nos integramos como seres dotados de vontade, mesmo quando dela “fugimos”. Mas o “destino”, essa estranheza, é um caleidoscópio de espectros a que damos a importância da crença de um oráculo; a esperança de uma “protecção” sobrenatural ou o desespero quase irracional de um “mundo subterrâneo”, de um abismo que nos chama, que a dimensão primitiva e mágica do nosso pensamento alimenta no sentido contrário à matemática do mundo. Em algum ponto desse percurso desigual, acabamos por nos exigir a revolução pura do livre-arbítrio, porque o sangue que nos envolveu a nudez, reclama, desde o início, a liberdade natural para que tenha uma razão plausível. Sucede, assim, que somos náufragos de um mar sem navio à vista e, mais ainda, somos náufragos de uma origem queimada pelos deuses. A questão à nossa frente, nesta sociedade da invisibilidade paradoxal, é a da liberdade de poder, de dever rejeitar a menorização que hoje é imposta. Tornámo-nos invisíveis por saturação e não temos, nem os argumentos nem as “armas” conceptuais para lutar contra essa condição tida como “normal”, nem a tenacidade. Na sociedade da invisibilidade não existe solidão nem esquecimento, “tudo” se consome e passa com a velocidade vertiginosa da ideologia da “informação”. Não sabemos defender-nos, e assim ao que pensamos. Neste sentido, o tempo é a manifestação da distância dos fenómenos onde já não existe “eu”, mas o todo invisível à acção de pensar; quer dizer, a nossa invisibilidade é o resultado, por um lado, da ideologia “informativa” e, por outro, das pequenas ditaduras que se alimentam da indiferença como a sua forma de subsistência. Vivemos num território dominados por lobos esfaimados e excitados pela claridade da Lua, por “donos”. Nesta sociedade da invisibilidade paradoxal, o que nos resta? O princípio – a verdade, a dignidade, a liberdade… e o seu preço.

O Silêncio | Capítulo 2

A casa tinha anotada, sobre a porta da entrada, a data de 1826; os números, no lintel, tinham uma forma tosca, dir-se-ia terem sido gravados à pressa ou por mão incipiente, apesar da sua profundidade na madeira crua. A decisão com que a data fora talhada indicava que talvez estivesse destinada, por uma razão oculta ao entendimento, a atravessar os tempos. O desenho dos números, imperfeito, evocava uma antiguidade perdida e melancólica a que era impossível aceder. A imaginação estabelecia, no talhe da data, os contornos de uma simples, despojada, distante de toda a influência humana. Os vidros das janelas permaneciam intactos e para além deles existiam ainda cortinas brancas semitransparentes e de corte delicado. A porta, à qual se acedia por três pequenos degraus, estava fechada. Nenhuma marca do tempo existia no perfeito telhado de pedaços quadrados de ardósia. Nos dias em que a luz era ferida pelo céu violáceo das tormentas, o branco arruinado que revestia as paredes exteriores da casa, resplendia. O Inverno daquele ano indeterminado havia sido pródigo em tempestades e vários navios naufragaram nas primeiras rochas da praia porque a casa não ardera como era uso em tais tempos alterados. As embarcações navegavam ao largo para evitar um mar não mapeado e os marinheiros tomavam aquela terra como um lugar amaldiçoado. Sempre que a casa não ardia à passagem dos veleiros, aparecia algum homem, sem distinção de hierarquia, enforcado no mastro grande. Por essa razão, os marinheiros prendiam-se com cordames ou desciam da coberta para se colocarem a ferros. Mas sempre um enforcado pendia do mastro. Entre a marinhagem, era maior o terror de serem atirados para a costa do que propriamente o naufrágio e o afogamento, pois todas as lendas incertas e antigas que viviam nas bocas dos homens do mar tinham o travo da indeterminação e ninguém sabia onde descansava a verdade. Nenhum dos poucos sobreviventes dessas tragédias tocou a casa, porque a falésia era demasiado alta para que a vissem, e prolongava-se por uma enorme distância. Os habitantes da aldeia, situada muito para além da casa, nunca se aperceberam dos naufrágios, pois não tinham vista de mar nem lá chegavam os gritos do desespero. Aos náufragos restava-lhes seguir a pequena língua de areia e rochas até que a falésia diminuía de altura e lhes permitia subir aos campos. Nesse momento já não podiam avistar a casa. Prosseguiam, os poucos que se salvavam, na direcção do Sul, orientados pelo voo das gaivotas e de outros pássaros. Mas o caminho do Sul acabava sendo para eles um deserto sem termo, húmido e batido pelo vento gélido. No último desfazimento de um navio, um dos náufragos decidiu caminhar em sentido contrário. Enquanto improvisavam uma tenda com restos de cordames e de lona das velas que trouxeram dos despojos dispersos pela praia breve, o náufrago pensava que a Sul nada haveria para além da vida vulgar que abandonara pelo mar. Além disso, pensava, seria um quarto sombrio em qualquer estalagem o que o esperava. E regressaria, inevitavelmente, carregando em si o silêncio que o procurava, ao mar; não conhecia, a meio da vida, outro mundo que não fosse o de navios e portos estranhos e exóticos ao seu entendimento. Aliás, tudo lhe parecia demasiado exótico e cansativo, desprovido de um sentido que lhe justificasse a existência, o corpo e o pensar. Considerava, aliás, que já vivera o suficiente para regressar, demasiado até, para o meio em que nascera. Pelo alvor da manhã do dia seguinte, o náufrago abandonou os seus companheiros de infortúnio sem lhes dizer palavra e foi abrindo um carreiro por entre as ervas húmidas até que passou nas imediações da casa, que julgou habitada, e alcançou vista da aldeia onde as casas se combinavam com o topo e a inclinação de uma colina branda. Estugou o passo antes de percorrer o caminho sinuoso que dividia pequenas parcelas de terrenos cultivados definidos por muros de pedras soltas e irregulares. Ainda que no seu espírito ardessem sentimentos contraditórios, chegara. Logo que entrou na aldeia deu conta da taberna, assinalada por uma tabuleta de madeira gravada sobre a porta, da qual pendia uma lanterna cuja vela estava apagada. Subiu os três degraus de pedra desgastada e entrou. A casa, de tecto de madeira segurado por grossas traves de carvalho, estava ensimesmada de obscuridade. Avisou do sucedido com o navio, mas ninguém se lhe dirigiu ou falou, pois há muitos anos não viam um forasteiro e isso poderia significar, imaginava ele, que a aldeia perderia, por qualquer razão que com ele viesse, o segredo do seu paradeiro e a maldição que a envolvia. Além disso, se o náufrago pela vista da casa, isso constituía, para a aldeia, uma imprecação superior à própria morte, mesmo que nada soubessem acerca da casa. Trespassando o silêncio, o taberneiro, um homem velho de barba pelos peitos, serviu ao desconhecido um pequeno copo de uísque e aconselhou-o a abandonar o povoado e a seguir o seu caminho para as terras férteis do Sul, pois nada havia ali que o pudesse deter. O náufrago fez o que lhe foi dito e seguiu ao encontro dos companheiros pela beira da falésia até ao ponto em que era possível contorná-la e aceder à praia estreita, onde os seus companheiros o aguardavam. Demorou dois dias a chegar e disse aos outros que prosseguissem, pois, nenhuma casa existia para as bandas de onde viera. Nenhum dos homens da remota aldeia, depois de ouvido o relato do náufrago, foi ao encontro dos despojos da tragédia. Naqueles dois dias que o náufrago demorara a chegar até à praia, aconteceu na aldeia um episódio singular: a mulher do taberneiro, uma mulher muito mais nova do que ele, num dia em que ao vento se juntou uma chuva igualmente gélida, aproximou-se da casa, movida por um sentimento dúbio de raiva e de angústia que lhe desfigurava o rosto e apertava o peito, e viu a data esculpida no lintel da porta. Então o silêncio entrou pela sua boca.

O Silêncio | Capítulo 1

O silêncio guardava o mundo e a diversidade movente das suas coisas e pairava sobre todos os objectos da Criação, da terra ao céu, do dia à noite. O silêncio compreendia, na sua vastidão inumana, uma abóbada embaciada de cinza e de sombra diluída no prólogo melancólico da tarde que depois a noite tornava invisível na sua lisura pontuada pelas estrelas das constelações; um vento agreste, persistente e gelado, que oscilava sobre as coberturas de colmo das casas e se expandia na direcção da planície sem nome, provocando uma dança de rumo variável que agitava um vasto campo de ervas verdes. Uma perseverança perdida entre as poucas habitações, entre os muros de pedra solta que se alongavam na irregularidade da colina branda onde fora construída a aldeia. Um silêncio estranho como um presságio que saísse da boca de uma sibila, um pouco mais do que apenas misterioso, habitado por conceitos que aquela parca gente desconhecia, palavras breves que se encontram apenas no sangue intangível, puro e flamejante, desprovido da mancha da dor; o silêncio, uma terra negra de lava arrefecida, uma ilha nova, fustigada pelo Norte, pelo vento e pela salsugem do mar, uma falésia de calcário estratificado por milénios , na fronteira de um mundo fechado e irregular de almas atormentadas vagueando pela aspereza do seu destino. Tudo naquela terra se media pelo crivo do silêncio, longos dias iguais que ascendiam da névoa e acabavam na sombra oblíqua das casas, olhares subtis, desconfiados ou fulminantes, gestos feitos do que tinha de ser, obscuros ou discretos na sua visibilidade, bocas fechadas, a pele e o seu segredo proibido. Ninguém podia dizer que a casa de madeira apodrecida, onde o frio riscou brechas na tinta branca, tivesse alguma vez sido habitada. Ninguém sabia, fosse o que fosse, sobre aquela casa. a sua fachada principal tinha uma porta ao meio, ladeada por duas janelas grandes de guilhotina, e um primeiro piso com três janelas, mais pequenas, também de guilhotina. Para os habitantes da pequena aldeia, a casa era um fantasma ancorado rodeado das mesmas ervas verdes da planície sem nome. Transmitia a impressão de uma aura de simples ignorância acerca do seu passado negro e do seu destino. É a última casa antes da falésia e dista dois dias de caminho até à aldeia, mas nenhuma vereda seca o indica. O tempo e o medo não deixaram marcas no solo. É semelhante a uma ilha, a casa, rodeada de uma inóspita terra-de-ninguém, por um espaço infindável e desabitado de almas, à excepção da aldeia, cujos habitantes lhe chamam “o anjo caído”, mas na sua imaginação, um anjo de longas asas negras, como as penas de um corvo, que no seu telhado de duas águas tivesse pousado para a guardar. Esse anjo não era um mito, somente nunca fora visto. Ninguém chegou, ninguém partiu, e o silêncio da casa consente a violência do vento eterno e o ruidoso encontro ríspido do mar contra as rochas escuras na base da falésia de calcário. E assim a casa permaneceu como a última raia da humanidade da aldeia distante e do seu silêncio. Nas noites de tempestade, ardia sem ser consumida e era o aviso dos navios que passavam ao largo. Muitos naufrágios nocturnos foram por essas labaredas evitados. O único mistério entendível da casa era o silêncio incógnito e capital de não se ter dela lembrança alguma. E então ninguém alguma vez profanou aquele silêncio sem origem.

Diário, 286

2023, Novembro, 19 – As contradições do tempo – as nossas contradições – dispondo tudo em seu proveito, transfigurando os dias e as noites em lapsos do entendimento, acumulando significados às idades, assoberbam-me o pensamento de maneiras diversas, entrelaçadas como as fortes raízes das árvores que rompem a terra ou apenas como os filamentos das videiras, os nervos das folhas verdes agitadas pelo calor da luz. Frágeis nos submetemos, por condição intrínseca, à força invisível do tempo, que nos condena, como réus de agravos de que não somos figuras. Tudo o que principia regressa à gravidade centrípeta do início da desigualdade do tempo à vista da nossa concepção dele. Não temos refúgio. Quando o dia cessa e a noite impõe, com as suas águas paradas, ou com o seu torvelinho de angústias sem origem, uma vivência-resumo de um tempo estagnado, as coisas ferem a física, descarnam o tempo e nenhum acontecimento recai sobre elas. A sombra toma a forma das coisas, a ilusão impera sobre o pensamento, o passado, o presente e o futuro surgem como relâmpagos no centro dessa ilusão, no centro da tempestade que tudo coloca em movimento. Contemplo a minha face no espelho e nela encontro uma dada matéria do tempo na configuração dos seus pormenores onde estão desenhados os vincos de um passado, traços de aparo sobre o papel, a imobilidade ilusória do presente, a prospeção imagética do futuro. Desprovida de ansiedade, aquela contemplação momentânea na altura das abluções, corresponde apenas à força de uma evidência em que nos achamos impotentes, resultados somente. Então, aí, o tempo torna-se uma suspensão milimétrica da respiração. E continuamos, até ao desmoronamento, em todos os pensamentos errados que temos sobre o tempo, salvando-se, apenas, na nossa intuição do tempo, as representações. Imaginamos o tempo, caucionamos memórias como pedaços de imortalidade. Sim, é possível sermos habitados por momentos de imortalidade que do passado aportam para nos situarmos. Para nos situarmos…

Diário, 285

2023, Novembro, 15 – Um vidro translúcido, improvisado espelho onde a luz é o cúmulo secreto que desenha a matéria apócrifa das coisas; inefável espelho que acolhe o estiolamento da realidade na mesma sede com que aceita a chuva e o calor, os mundos que se desejam e não se procuram; uma luz pontuada pelo sal do mar e pela poeira lívida da terra; um espelho a que é dada a transcendência da imobilidade, o silêncio da quietude, o reflexo da luz macerada de um candeeiro. O mundo desliza, mudado em sombra, perante o vidro como uma história que as circunstâncias não fixam nem conferem apego; através desse vidro, a duplicidade da contemplação do mundo e de si, gera o pedúnculo das palavras que faltam, e essa falta, essa suspensão momentânea do diafragma, agrega segredos, relâmpagos, a dor enfim. E na perspectiva do vidro, as metamorfoses do céu abrem sinais instantes, antecipações e profecias frágeis que a verdade escreve nas invisíveis imperfeições da superfície do espelho luminoso. Mas depois, contudo, o espelho verdadeiro, oxidado pelo tempo, e onde o tempo se movimenta nas peculiaridades de um rosto. A luz desse espelho real, onde a acuidade da carne se revela sempre pela primeira vez, é incisa no vidro, ainda que a lâmpada se apague no termo dia, desmentindo-a inutilmente, porque depois a manhã repõe o mundo.

Diário, 284

2023, Novembro, 13 – O tempo transcorre, é um reflexo no vidro límpido de uma janela segundo a inclinação do sol ou a luz estática da noite, sem remédio, sem justificação, e a memória contradita-o até ao limite da névoa. Há pormenores dessa memória que vão secando e a lembrança dilui-se numa impressão vaga e fragmentária, mas imperecível na sua dimensão poliédrica, como um preço a pagar pelo excesso de ser-se perante si. Tudo se vai tornando, lentamente, uma forma de indizível que reconhece e habita a essência. E então, neste estádio de não-palavra, encontramo-nos numa determinada voz que prossegue acima do destino

As horas são água decorrente

Neste tempo angustioso e pouco apaziguador, nervoso de ansiedade onde as horas são água decorrente, o crepúsculo é difuso e mescla-se com a sombra descendente que antecipa a escuridão e com uma réstia de luz ocre na visão redonda, indicando a orientação fantasiosa do horizonte para além do perfil já negro das árvores, queima por instantes uma realidade inefável na qual julgas saber ordenar o relógio das coisas. Encerrado no silêncio e na sua bênção, o que em ti é natural, cultivas esse ouro da noite, recordas, antecipas, juntas as folhas outonais. Quando a noite abraça este mundo e tudo encobre, também a fragilidade do caos domina o teu espírito como um acontecido que por ínfimos momentos não distingue o passado do presente; como um labirinto de porta cerrada por fora. Uma luz fulminante os ilumina a espaços. Escutas o mar num búzio grande, intacto e sem a mácula humana; imaginas que ali foi colocado pela sibila Délfica, e lá o deixas, esperando a maré que o encherá de espuma e de areia e o resgatará, sufocando o mar que ouviste. Deixas na praia a profecia ilegível à tua boca.

A ignorância dos astros

Já se entende a lâmina do frio e as suas chagas entre as raízes dos dedos. Em breve as ervas selvagens gelarão debaixo da lua e a manhã auspiciosa, com o seu calor inicial, as libertará da branquitude. Havia noites em que a mudez escaldava como a acidez do vinho; noites sanadas na febre da linguagem que lhe servia de espelho. Depois, o dia dispunha tudo na forma de uma extensa ruína desabitada. Se te esquecem é porque não te lembras de ti e não porque os deuses te tenham abandonado a deambulações inúteis. Seria vulgar o deserto, o vento, a areia riscando-te o esmalte dos dentes, os lábios secos. De noite os objectos adquirem uma obscuridade luminosa feita do pormenor de reflexos quebrados, um perene fogo de santelmo. Sentes a face, as órbitas, os lábios fechados, a língua que pronuncia a matéria das palavras que ainda não traduziram os oráculos nem fizeram a prova do molde na forja. Uma luz macilenta revela os plátanos defronte e o som informe das vozes sobe da rua, ignorando as ervas selvagens, ignorando os astros.