Da velhice, um esboço

Estou no tranquilo umbral da velhice, a idade em que a vida se reparte entre a forma como foi vivida e as qualidades que são disso a consequência, quer tragam sobre nós o arrependimento e a culpa, quer a ausência de lamentações. No primeiro caso, a velhice será um caminho terrível, espinhoso e amargo, de tormentosas recordações e de factos que, não se podendo mudar, arrastam consigo o passado envenenando o presente e reduzindo o futuro à lástima do não-vivido. No segundo caso, a ausência de lamentações permite o lugar da filosofia e, por conseguinte, um desejo de futuro. Naturalmente que este desejo é diferente dos desejos anteriores que pertenceram ao esplendor de outras idades, mas considerando a proximidade cada vez maior da morte, tem-na como um ponto culminante do percurso que foi a vida e não como um descanso entendido apressadamente e carcomido por um medo que vem de longe. Respeita a tua velhice e não queiras que ela seja o que já não pode ser nem dar; se a entenderes como uma dádiva não farás dela o martírio de a negar em esforços artificiais. A velhice não tem equívocos e não é possível alcançá-la envolta na negação e, assim, num regresso ridículo à juventude. Creio ter sido Séneca a dizer que chamar jovem a um velho é ofendê-lo, é negar-lhe a experiência que o trouxe até ao lugar onde está. Todavia, é preciso saber não transformar a velhice numa arma de arremesso e abraçar sem remorsos a tirania da arrogância. Na verdade, escreve Cícero, «os insensatos, com efeito, atribuem à velhice os seus próprios defeitos e a sua própria culpa.»* Mas sucede que a velhice é hoje desprovida da filosofia que deveria assistir-lhe sendo inquinada pelo ócio. Isso acontece que nenhuma das idades tem qualquer filosofia, o seja, tem a filosofia de a não ter. Na sociedade que transcorre, a velhice foi banida e tornada invisível, refugiada longe da vida da contemporaneidade, fechada em casas onde reina a sombra da morte. A velhice tornou-se um sofrimento porque não se dá conta dela; tornou-se o mais elevado grau de imperfeição. Os iludidos, aqueles, afinal, que nunca conseguiram abandonar a adolescência, vivem dentro de um modelo, para eles perfeito, que os reduz ao ridículo. Não é possível chegar novo a velho. A velho, chega-se envelhecendo e não o contrário. Mas, em todo o caso, e isso não é de somenos, a preocupação proporcional com o corpo robustece o pensamento porque lhe não mente. A velhice é proporcional à vida que se viveu: «As artes e a prática da virtude são as armas mais propícias à velhice, as quais devem ser cultivadas em todas as idades. Quando já se viveu o bastante, produzem frutos extraordinários, porque não só nunca nos abandonam, e muito menos no final da vida – facto de enorme importância – como ainda a consciência de uma vida bem gerida e a recordação de inúmeros actos louváveis constitui uma grande felicidade.»*. Por outro lado, a velhice é a natureza que não se repete – nem tudo passou, nem tudo ficou indelevelmente mantido no passado; feliz é o homem que soube discernir no passado as virtudes e as acções que lhe confortam a velhice. Se um velho julga alcançar a sabedoria é porque nunca a conheceu antes e então, longe de ser o processo natural com que se pensa a vida para além da contingência, torna-se um esforço inglório. Porque não aprendeu a pensar e porque o tempo lhe falta.

* Marco Túlio Cícero, Catão-o-Velho ou Da Velhice, tradução do latim, introdução e notas de Carlos Humberto Gomes, Lisboa, Edições Cotovia, 1998.

Imagem: Rembrandt, Retrato de Velho, óleo sobre tela, 1645, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, Inv. 1489.