Fragmento: A sociedade da invisibilidade

Somos náufragos de um mar de sangue em busca de uma terra que nunca alcançaremos, o primordial “Paraíso” traduzido pela perfeição e pela felicidade sem questões, lisa. Mas tanto a ideia de perfeição como a ideia de felicidade apresentam-nos questões e esperam respostas, dentro das quais cedemos. Emergimos nus, cobertos por uma película desse sangue para “algo” a que usualmente chamamos “destino” – um livro apócrifo cuja leitura nos é vedada e, por consequência, num movimento hiperbólico, tende a minorar em nós a capacidade plena de nos pensarmos e, assim, de tornarmos legível a realidade com um “corpus” em que nos integramos como seres dotados de vontade, mesmo quando dela “fugimos”. Mas o “destino”, essa estranheza, é um caleidoscópio de espectros a que damos a importância da crença de um oráculo; a esperança de uma “protecção” sobrenatural ou o desespero quase irracional de um “mundo subterrâneo”, de um abismo que nos chama, que a dimensão primitiva e mágica do nosso pensamento alimenta no sentido contrário à matemática do mundo. Em algum ponto desse percurso desigual, acabamos por nos exigir a revolução pura do livre-arbítrio, porque o sangue que nos envolveu a nudez, reclama, desde o início, a liberdade natural para que tenha uma razão plausível. Sucede, assim, que somos náufragos de um mar sem navio à vista e, mais ainda, somos náufragos de uma origem queimada pelos deuses. A questão à nossa frente, nesta sociedade da invisibilidade paradoxal, é a da liberdade de poder, de dever rejeitar a menorização que hoje é imposta. Tornámo-nos invisíveis por saturação e não temos, nem os argumentos nem as “armas” conceptuais para lutar contra essa condição tida como “normal”, nem a tenacidade. Na sociedade da invisibilidade não existe solidão nem esquecimento, “tudo” se consome e passa com a velocidade vertiginosa da ideologia da “informação”. Não sabemos defender-nos, e assim ao que pensamos. Neste sentido, o tempo é a manifestação da distância dos fenómenos onde já não existe “eu”, mas o todo invisível à acção de pensar; quer dizer, a nossa invisibilidade é o resultado, por um lado, da ideologia “informativa” e, por outro, das pequenas ditaduras que se alimentam da indiferença como a sua forma de subsistência. Vivemos num território dominados por lobos esfaimados e excitados pela claridade da Lua, por “donos”. Nesta sociedade da invisibilidade paradoxal, o que nos resta? O princípio – a verdade, a dignidade, a liberdade… e o seu preço.

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