“e eu mal aventurado mourome andando assi antre cuidado e cuidado” – escritos sobre a depressão, 16

O silêncio, esse universo indizível, precede tudo, mesmo o próprio silêncio, aquele que se diferencia pela prostração psíquica, pelo vazio de pensar, pela incapacidade de realização, pela noite dos olhos fechados enquanto espero que a noite mais verdadeira e natural me traga o sossego de um dia informe que alcança o seu fim. Então mergulho num lago negro quase até ao sufoco, quase até me afogar, regressando nos últimos segundos à superfície e respirando o mais fundo possível. A água do lago será gelada para que eu acorde, não do sono, mas do torpor. E sairei do lago, vivo.
A questão, as mais das vezes, é começar a escrever, considerar suficientemente a utilidade do acto e do seu movimento, encontrar uma razão que supere, ou pelo menos atenue, o silêncio profundo que me submerge e o torne uma realidade “visível” que proporcione o ver-me fora de mim, salvando-me do peso da depressão, ainda que por instantes – a depressão não tem “instantes” – retidos para formar, no silêncio uma clareira. Esse intervalo só o consigo encontrar na escrita, a única vereda de uma floresta densa e negra, onde o sol ou o reflexo da lua não entram. Mas perco sobre tudo o interesse e o desejo. O tempo é tão pesado como o corpo e então adormeço. Sento-me ali, no sofá, e aguardo que o sono possa ser uma fronteira entre um antes derrotado e um depois salvífico. Mas a maior parte das vezes, quando acordo, tudo permanece e adormeço de novo. Acontece passar assim um dia inteiro, numa descompensação onde me desmorono. Depois vem a noite natural e sossego um pouco; há um silêncio igual em mim, um abandono incondicional ao cansaço que transitou do dia e da sua densidade informe. Fumo, escrevo, ouço a música repetida destes momentos. E mesmo durante a escrita sucumbo à sua razão e, por vezes, sou levado a desistir. Persisto ou caio na melancolia e considero que é inútil continuar, que me repito, que nada “disto” tem o mínimo interesse e que ninguém deseja ler “coisas” desta natureza. E de facto assim é.
Decidi terminar as minhas publicações na rede social, pois colocava nelas uma expectativa que nunca era preenchida de um modo satisfatório. As pessoas não leem e se o fazem não o manifestam. Constatei que isso me estava a prejudicar e que devia tirar o sentido de uma situação desequilibrada e sem reciprocidade. Ninguém dará conta disso; é preciso ter a noção de como as pessoas são volúveis, insensíveis a uma escrita que não as distraia. E a verdade é que, tal como na rede social, assim na vida real acontece e a depressão é falsamente falada, mencionada, e tudo não passa de um discurso de circunstância.
Os medicamentos não estão a debelar a depressão, que lhes resiste.

Citação do título: Bernardim Ribeiro, «Egloga Qvarta chamada Jano», in História de Menina e Moça, reprodução fac-similada da edição de Ferrara, 1554, estudo introdutório de José Vitorino de Pina Martins, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. cix [109]

Fotografia: Jorge Muchagato, 2021

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