Diário, 269

2023, Setembro, 21 – O tempo, essa substância difusa que o não é e age em nós como espelho material e como consciência que o apercebe de modo subjectivo e dessa maneira age sobre o corpo e sobre as coisas. Do tempo pouco mais se pode dizer que se consome sem se consumir e nós nele, que vencemos pela vida, sucedendo-se, nesse vencimento, as idades e as ideias, como o destino de uma tragédia em que não temos mão. O tempo é a ilusão que se consubstancia em tudo quanto passa e nós nisso. Não pensamos em tais coisas e cremo-nos na imortalidade pueril de termos esse tempo na condição de dominado. Dividimos o tempo como dividimos o pão, sob o jugo extemporâneo da eternidade. “Praticamos” o tempo com o próprio tempo que nos vai “fazendo”. No interior dos estados volúveis do espírito, o tempo projecta-se como um desenho impossível e é todavia a arte que o derrota. E assim a sucessão das gerações. Não te convenças de seres tu, na tua condição efémera, a única medida do tempo, a única visibilidade da sua passagem. És tu que passas, não o tempo, que nem sequer sabes defini-lo. Em que mundo estarias se o fosses; em teu redor, a Natureza sucede-se e as suas estações concretizam eternamente o tempo e tu és, nessa eternidade, uma existência quase invisível. Levanta-te, contudo, desse peso, mas não te libertes dele absolutamente, pois estabeleces no tempo uma hierarquia de acontecimentos passados e presentes ou projectados no futuro. Mas acontece que és uma parcela do tempo e, porque te calculas com um futuro, sonhas, ambicionas a construção. Mas acontece que essa parcela do tempo te pertence sem condições na sua extensão idealizada. Levanta-te e vive, pensa que tens um tempo que te é dado e que essa dádiva é a mais cara e não a podes pagar e que, no fim, nada te pertencerá. Talvez sejas apenas a angústia que o espelho te devolve.

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