Em cada dia que arde

Em cada dia que arde, a minha face no espelho, pela manhã, é a soma arquetípica do tempo, a sua medida exacta nos sulcos que a luz branca da lâmpada denuncia sem assombro. A memória, caleidoscópio de imagens, lentas como a névoa, bruscas como um relâmpago, foi riscando a minha pele, agora agreste, como um desenho preciso destinado ao silêncio ancestral do fim. Só o meu rosto é o lastro de uma navegação batida pelo acaso do sal no vento. mas cada passagem desse arado onírico está certa com a lembrança oscilante das coisas e com o fogo que as revela e salva da treva natural dos caminhos; significados que as abluções da manhã e da noite decifram, mudas. Ao mesmo tempo, o rosto em que fixo o olhar dos segredos, é um delator confesso que aceito e guardo como uma evidência sem fuga, uma ferida inata que a acompanha. A minha face no espelho é tão real que nenhuma voz lamentosa, oriunda do passado e das palavras que ecoam, a dissuade do confronto entre mim e a imagem de mim. Em cada dia tomado pelo fogo, o meu rosto avança, laborioso, no tempo, e as suas marcas fazem-me entender a sabedoria que passa pela sua pele; esse tempo que impera no reflexo onde a verdade não se vende.

Fotografia: JM, 1 de Junho de 2023

All-focus

Deixe um comentário