O pássaro negro

Amália é o desconhecido e a sua outra ensombrada face, o silêncio, e entre ambos a sua multiforme voz de Janus – ornamentada pelo esplendor divino da Natureza e por um pássaro negro. Um pássaro negro que umas vezes voa na sua voz, com asas cintilantes do sol e outras lhe toca no ombro. Tudo nela é esse pássaro do destino e do milagre; o destino do dom e o milagre de o suportar no canto, transfigurando-se nas cores do prisma e nas propriedades da noite. O seu canto é a condição da vida e a fatalidade absurda da morte, a passagem longínqua dos dias e a permanência inefável das noites, o movimento cíclico dos mares e a penumbra da solidão, do simples e indizível vazio, do afastamento. Dela só entre os “outros” do mundo. Amália é Hunila, a mulher-solidão que nunca se perdeu de si, e que um veleiro salva do amor. Na sua voz de Janus reside um desconhecido que ainda não fora descoberto e um silêncio a que a história ainda não dera um rosto. Aquele pássaro negro emerge da sua voz à medida que ela reconfigura o tempo e os seus diversos tempos; a sua voz enegrece no sentido da consciência das coisas e do seu Fim. Construímos a nossa solidão, dizia Duras. Aconteceu isso, com ela – à sua solidão acrescentou tudo o que a vida lhe foi dando e tirado. E, por consequência, aos matizes do seu canto e da sua voz correspondeu a exaltação e o desencanto. E, no princípio, «Daí este meu cansaço / De sentir que quanto faço / Não é feito só por mim.» É o pássaro negro que volteia, livre; que volta. Sempre.

Deixe um comentário