patologia do acaso, diário, 194: a bolacracia

2021, Maio, 31. O que para uns representa uma indomável força anímica e uma forma de loucura visceral absolutamente necessária para lhes conceder à vida a revolta que por completo desconhecem, para outros conclui-se num arremedo do mais elementar primarismo tribal, do mais incipiente irracionalismo que nenhuma explicação, por mais estruturada que seja, consegue fazer entender. Aos primeiros assiste a força da multidão desbragada, animalesca e sem objectivo plausível, a que chamam, simplesmente, uma imensa “festa”; aos segundos, contempla-os a fraqueza de desconhecerem uma das maiores alegrias da vida: a realização completa do ser individual no ser colectivo que se reconhece no clube, o privilégio único de pertencer a uma forma agregadora da existência e da identidade. Se deste modo pode ver-se a realidade do futebol, tal não significa que essa realidade seja, nos seus limites particulares, o que realmente se vê, pois é muito superior o que, em tais circunstâncias, não se vê. Construiu-se, com arreigados alicerces, uma retórica identitária que justifica uma autêntica tribalização da vida – segregadora, nefasta, violenta e destruidora do indivíduo que se entrega, sem reservas, a um extremismo indomável que em extremo lhe excita os sentidos e em absolutamente nada se relaciona com um dado “espírito” tão apregoado por quantos defendem as qualidades felizes do fenómeno de massas que é o futebol. A verdade, todavia, é que os adeptos estão na margem do futebol, são, pois, os marginais necessários para a glorificação dos pequenos deuses a quem atribuem a felicidade da sua devoção sem reservas e que tudo justifica, como esperar horas para ver passar o autocarro que transporta tais eleitos. Tudo isto me é incompreensível, sob qualquer ponto de vista que se adopte para tornar racional estas escolhas individuais no contexto de um comportamento colectivo. Os serviços informativos das televisões generalistas dedicam ao futebol um tempo desmesurado, o tempo que as audiências reclamam. O que este bric-à-brac nos diz, e em particular quando falam os grandes cães da matilha, e pensando no contexto pandémico em que nos encontramos, é que o verdadeiro regime pelo qual a populaça se rege é o da bolacracia. Não pensemos, todavia, que a bola é uma espécie de “ópio” do povo – a bola é a própria vida do povo, o cenário das suas grandes alegrias e das suas devastadoras tristezas e os políticos sabem-no. A populaça não tem uma consciência política fundamentada, vota por simpatia ou por empatia, vota ainda melhor se o candidato está disposto a manter a bola intocável no altar das mais baixas libações; a populaça vota pela reciprocidade do beijinho ou do abraço ou da mera proximidade como se esta se tratasse de uma aparição sobrenatural. A populaça é incapaz de se ver fora de si, está resumida, inteira, no cachecol ao pescoço e condensou e resumiu a sua consciência política na fotografia com o presidente da República cujo tipo de popularidade não é genuíno, mas bem pensado, uma vez que representa um esvaziamento das qualidades naturais de todo e qualquer Poder. Nada disso importa, não é esse o poder que realmente decide sobre a vida comum. Fota disto, para o vulgo informe, existem apenas os tremoços, os amendoins e a cerveja que acompanham o visionamento da bola. Vivemos, como estes dias o demonstram, em termos de agenda informativa e de delineamento da acção dos diversos poderes políticos do regime, na consequência política “disto”. Tudo pela bola e nada contra a bola, nem sequer a indiferença – ou a populaça, estando para aí virada, ainda é bem capaz de mostrar quem manda.

patologia do acaso, diário, 193

2021, Maio, 21. Aos primeiros clamores do ocaso, o silêncio em que me situo, reclama sobre o meu entendimento o seu ascendente intransponível. Não me questiono sobre esse silêncio que incorporei à minha natureza essencial, uma vez que o conquistei. A minha questão é dirigida no sentido da obscuridade. Tenho a impressão profunda de que a força anímica da minha escrita se desmoronou, pois não consigo aproximar-me do cerne dessa obscuridade e, na mudez da noite, cedo perante um vazio absoluto, repleto de vulgaridade, onde nem a minha tristeza reconheço. Observo o fumo do cigarro cujas volutas a luz do candeeiro revela e pouco mais compreendo para além da consciência bruta do corpo no tempo e no espaço e do ritmo da respiração. Acontece, porém, que existe também uma questão de linguagem e que sobre ela recai um silêncio exterior, que deveria ser suficiente, uma vez que lhe confirma o sentido e a verdade. Eu deveria ter a coragem de não escrever, mas não a possuo, fraquejo nisso, esperançado durante o dia e perdido logo que pressinto a noite. Se me permitisse reduzir ao que a realidade é e à imobilidade das “coisas” e apenas as traduzisse e as dissesse tal como são, tal como se apresentam à minha percepção, não haveria angústia, nem ansiedade, nem descrença. O fascínio da obscuridade representa uma consciência da complexidade invisível dos estados psíquicos e da natureza das “coisas” e essa é a matéria pensável de tudo, desde a razão crítica ao lugar da morte. Então a realidade afigura-se imóvel até ao excesso e o gume de uma lâmina pode abrir a carne.

patologia do acaso, diário, 192

2021, Maio, 9. Estou dentro do silêncio. Absoluto. E dentro desse silêncio, estou dentro de uma decisão antiga, que a vida e o tempo que cicatriza a vida, transformou em ideia. Estou dentro dessa ideia. O espaço da minha terra de ninguém chegou ao fim, o sentido anímico perdeu-se algures. Espero a eclosão súbita da minha existência, e é tudo.

patologia do acaso, diário, 191

2021, Maio, 4. Todo o silêncio é obscuro, interior, irredutível. Esse silêncio é diferente da memória, pode convocá-la, mas não se confunde com ela. Esse silêncio interior é habitado por uma qualidade anímica de onde aparecem as palavras e, assim, resume na sua informidade a vida e a morte. É por esta razão que se pode escolher o silêncio enquanto acto. Quando se escreve, não é perante uma folha em branco que se está, mas perante o silêncio enquanto absoluto. E talvez seja mais acertado pensar que a expectativa eventual perante esse silêncio diz mais respeito à necessidade de representação do que às palavras, que é dessa necessidade que emergem, para que o seu significado seja atravessado por um sentido quando alcançarem a visibilidade. Todavia, a visibilidade das palavras nada significa, pois provém de uma solidão tão absoluta quanto esse silêncio. Esse, não outro. O silêncio não é uma ausência. O bramir do vento, ouço-o agora, a música, o som do mar, podem existir dentro desse silêncio e no entanto ele permanece inalterável. Reconhecer esse silêncio enquanto absoluto não representa um princípio, mas um fim. Um caminho foi percorrido para chegar a esse silêncio, o que quer dizer que se chegou a um lugar de onde não é possível nem aceitável que se regresse. Então é possível escrever, mas sem as expectativas formais que habitual e ingenuamente cercam a linguagem, pois o que está em questão é a liberdade e não a reciprocidade. Escrever é uma vingança, mas não sobre o silêncio; sobre si mesmo, sobre os outros, pois escrever é manter intacto o silêncio, compreender que nunca se abandona o lugar onde esse silêncio impera. Dentro desse silêncio é possível, ou melhor, é plausível que se esteja só em qualquer outro lugar.