Cartas R.V. Um ensaio

[décima carta]

Abril, 1

Pela manhã muito cedo, sob a luz original do dia, respiro o último frio da noite e oiço o som das asas dos pássaros.
Escrevi-lhe, numa carta anterior, que desejo estar o mais longe possível do mundo e do seu movimento. Saio de casa apenas para os cigarros e de longe em longe compro algum jornal que traga assunto do meu interesse. Mas o que significa, de facto, estar o mais longe possível do mundo? Na verdade, verifico, à medida que o meu estudo progride e se aprofunda, que para além das razões que possam estar no fundamento desse desejo, tal propósito representa uma impossibilidade irredutível, dado que estar distante do mundo continua a significar estar no mundo, pois eu sou, nas modulações da minha consciência, um mundo determinado cuja existência pressupõe, precisamente, um sistema do mundo no interior de cujas qualidades prossigo o conhecimento próprio, o conhecimento dos outros e o conhecimento das coisas. Assim como não me é possível estar fora do mundo, igualmente não posso existir no exterior do tempo nem das suas mudanças próprias; ora, para todos os efeitos, a minha percepção do tempo significa uma percepção do mundo, e ambos, tempo e mundo, pela natureza das suas qualidades que vão da historicidade ao acidental, em nenhum dia são os mesmos. A consciência desta variabilidade quer dizer que não posso fixar-me, que é impossível permanecer imóvel, e a consciência dessa realidade é a substância de um determinado mundo, que sendo perceptível é relacional. Creio, assim, que não me encontro perante uma recusa do mundo, mas dentro de uma relação com o mundo, e é essa relação que deve ser objecto do meu pensamento; quais as suas causas, quais as suas qualidades neste momento. Forçoso é, pois, concluir que tenho persistido num erro ou, pelo menos, insistido numa perspectiva desfavorável sobre a realidade, deturpada, mesmo, não devo ter receio de o admitir. Não é inteiramente o mundo que me perturba, mas a representação que tenho de mim e dos meus pontos de vista sobre o mundo e a sua estrutura humana. Nada, porém, obsta a que não exista um determinado tipo de distância que é uma opção intelectual, mas que é, também, o resultado de limitações materiais. A física diz-nos, desde Aristóteles, que a totalidade, o todo e o particular, do natural e do humano, é excepcionalmente complexa. E se penso dentro de um determinado quadro mental geral, por muito fragmentado que esse quadro mental hoje seja, é uma impossibilidade absoluta pensar fora do mundo. O que posso fazer, no limite, é pensar-me enquanto ser-em-si individual, autónomo e construtor do seu destino a partir da estrutura de um dado pensamento, ainda que esse pensamento não corresponda às orientações gerais da vida comum e a critique. O que também posso fazer, no limite, é assumir uma solidão enquanto consequência dessa crítica que, em todo o caso, pressupõe sempre um quadro relacional. Quando utilizo a rede social para expor as ideias dessa crítica, parto sempre da consciência da existência de um receptor qualquer.
Mas a verdade, agora que retomo a escrita, ao cabo desta especulação, e pela janela contemplo a noite, esse desejo de estar longe do mundo regressa, intacto e repleto de sentido, alheio a toda a filosofia, e a um tempo preenchido de solidão e de plenitude.

com a gratidão de sempre,
creia-me,
R.V.

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