patologia do acaso, diário, 213.

2020, Novembro, 7 – Saí já noite, a pé, para ir comprar cigarros. Chovia e as luzes dos automóveis reflectiam-se no alcatrão da estrada deixando um momentâneo rasto de luz. O empedrado do passeio reluzia sob a luz dos candeeiros. As árvores eram vultos negros recortados em todos os seus pormenores de ramos e de folhas. Tive a tentação das fotografias, fiz uma com o telemóvel, mas julguei inútil a intenção. Nada me pareceu suficientemente invulgar para que imobilizasse o mundo numa imagem. Não tenho fixado a imobilidade das coisas há muito tempo, pois já não lhe vislumbro sentido e não sei inteiramente porquê. Talvez a relação entre mim e a realidade tenha sofrido mudanças e só pela falta de sentido eu me tenha apercebido disso. Talvez uma qualquer forma de tristeza me domine e a realidade tenha principiado a ficar longe. O que imobilizamos, realmente, numa imagem fotográfica, e assim num desenho, é biográfico. A fenomenologia do olhar revela-nos. O que imobilizamos numa imagem fotográfica é, de alguma forma, uma a-memória, pois a fixação do instante está destinada ao devir, a uma memória irredutível nos seus pormenores, na sua composição, no seu espelho biográfico. Suponho que tudo isto se aplique às diversas artes. Ainda que a memória seja selectiva e vá embranquecendo com a transposição das idades, ela fixa indelevelmente o que de facto não passa e se essa impressão fundamental, por razões diversas, se desvaneceu, muitas vezes a simbologia dos sonhos a recupera. As coisas adquirem a sua visibilidade no tempo que lhes concedemos. E assim as pessoas.
Quando fazia uma fotografia, era tomado pela expectativa de tudo ver. Hoje, que a fotografia já não me interessa, talvez por me trazer uma realidade demasiado rápida na sua aparição, exercito a expectativa de tudo escrever. É provável que, mediante uma questão de sentido – o sentido é o lugar em nós da natureza das coisas – a realidade se me afigure excessivamente silenciosa, não distante, mas dentro de uma acuidade triste e quase insuportável. Não procuro explicação, é um ser-se. É a única explicação plausível.

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